(No começo de 2004, exatamente em janeiro, realizei um sonho antigo. Eu que tenho Ernest Hemingway como um ídolo, ansiava por levar uma vida como a dele. Ernest foi à guerra, às touradas, aos ringues de boxe, aos safáris na África. Eu achei que o mais perto disso que eu poderia chegar seria ir para Angola. A guerra terminara em 2002. Eu cheguei a tempo de ouvir ainda as lembranças dos últimos rugidos dos canhões.
Permaneci em Luanda de janeiro a julho de 2004. Sem nenhum planejamento, acabei voltando no ano seguinte exatamente em julho. De forma que passei 13 meses em dois anos diferentes em Angola. Na primeira vez em que fui, eu era um estrangeiro vivendo numa bolha. Na segunda, eu era um branco louco (na visão deles) que se misturava aos locais e frequentava lugares onde gente de cor clara não se atraveria a ir. Mas isso é assunto para outra história.
O relato a seguir está desatualizado, mas representa o espanto e o deslumbre de um homem branco no continente negro.)
“Luanda, capital de Angola, parece ameaçadora à primeira vista. Os prédios encardidos, as ruas entupidas de lixo e muita, muita gente andando na rua numa procissão sem fim. Mas, depois que o susto passa, é impossível não notar a beleza que, de tão exuberante, a sujeira não consegue diminuir.
A melhor comparação possível dessa Luanda da chegada é o cenário de um desses filmes futuristas-pessimistas como Mad Max ou Caçador de Andróides. As janelas ficam entupidas de roupas, as ruas são o escoadouro de uma água verde-acinzentada e mal cheirosa na qual alguns moradores lavam carros e até as crianças tomam banho. A pobreza e o lixo acumulam-se pelos cantos, saturando o olhar e asfixiando a alma. Mesmo numa cidade com poucos prédios, a sensação é de claustrofobia.
A sensação se agrava quando todos em volta recomendam a você para que não saia à rua nunca, a não ser acompanhado por um nativo. A população local, dizem eles, é extremamente agressiva com os estrangeiros e você poderá ter problemas. E, aqui e ali, faixas advertem contra o perigo da malária, espécie de souvenir sinistro de todos os que visitam Angola.
Quantas vezes você já teve Palu, perguntam-se os brasileiros, usando o apelido “carinhoso” da doença, também chamada de paludismo.
Umas quatro, responde o outro, conformado.
A doença fez a fama de um médico brasileiro aqui radicado há mais de 20 anos, hoje considerado um dos maiores especialistas do mundo em malária. Se você vier a Angola, é melhor ir na clínica do homem fazer um exame de sangue antes de ir embora. Se der positivo, é bom se tratar por aqui. No Brasil, pode ser mais difícil curar.
Sim, apesar da má fama dos serviços de saúde angolanos, os brasileiros aqui recomendam a tal clínica. Torci para que nunca precisasse conhecer essa “atração turística”. Em vão: com quinze dias em Angola meus olhos queimavam como fogo na pior conjuntivite que já contraí na vida. Triste dilema: o que arde mais, o colírio ou a doença?
O lado positivo da visita foi que o primeiro exame de sangue que fiz deu negativo para malária, apesar das dores no corpo e dos vômitos do dia anterior. Antes assim. Mas a África não é um destino para viajantes avessos a desafios. Meu sistema imunológico acusa o choque.
O outro choque é cultural. Por exemplo: toda vez que o Presidente da República precisa andar pela cidade as ruas por onde ele vai passar são interditadas com alguns minutos de antecedência. E o trânsito de Luanda, já caótico, fica ainda pior. Mas parece que ninguém reclama. Talvez todo mundo ache isso normal, num país que até há dois anos, vivia em guerra civil.
A guerra, em que o MPLA, partido no Governo, enfrentou os rebeldes da Unita, deixou cicatrizes profundas na nação. É impossível sair às ruas sem encontrar jovens mutilados, alguns ainda em uniforme de combate, talvez como uma forma de sensibilizar as pessoas a quem pedem esmolas. Eles apontam para a boca, querendo sinalizar que precisam do dinheiro para comer.
Embora Luanda tenha sido, durante os quase 30 anos de guerra, poupada dos combates, certa vez 10 mil combatentes da Unita foram exterminados pelas forças do Governo em plena capital. Por falta de espaço para enterrar os corpos, estes foram simplesmente empilhados e incendiados.
A violência da reação do Governo talvez tenha intimidado os guerrilheiros, transformando a capital num dos poucos lugares seguros do país. Como consequência, milhões de habitantes do interior fugiram para Luanda. E a cidade, prevista para abrigar 400 mil habitantes, viu a população explodir para um número estimado hoje em 4 milhões. Daí o caos urbano.
Plantando milho na banheira
Na verdade, a migração para a capital começou ainda antes, assim que o país tornou-se independente de Portugal. Muitos portugueses fugiram da instabilidade política e da revolução que subitamente os transformara em inimigos públicos. Alguns prédios foram desapropriados e gente acostumada a viver no campo foi subitamente instalada na cidade.
A angolana com que converso, filha de portugueses nascida aqui há 43 anos, conta que certo dia despertou com o som de um galo cantando em seu apartamento no sétimo andar. Como não tivesse galos em casa, resolveu averiguar a casa do vizinho do andar de baixo. Além do galo, e de galinhas, encontrou milho plantado na banheira. Ela diz que alguns chegavam a criar porcos nos apartamentos.
Verdade ou não, um pouco dessa situação ainda perdura em Luanda. O conceito de condomínio, a idéia de um espaço nos prédios que deve ser cuidado por todos, ainda não chegou à capital de Angola. Quase todos os prédios, com raríssimas exceções, têm o aspecto do que se chama da favelas verticais no Brasil, com lixo acumulado nos corredores, ratos e baratas transitando para lá e para cá. Elevadores praticamente não existem: os poços dos elevadores viram depósito de lixo. Apesar disso, você atravessa esse caos, sobe as escadas ofegante e encontra lá em cima apartamentos limpos, bem cuidados, alguns até luxuosos.
A explicação é que cada um cuida apenas do seu, sem ligar para o que é comum. Talvez por isso Angola viva o paradoxo de ser um dos países mais ricos da África ( tem petróleo, ouro, urânio, diamantes e um solo fertilíssimo) e ser ao mesmo tempo um dos mais miseráveis do mundo. Nas mesmas ruas onde os mutilados pedem esmolas, desfilam 4x4 importados que matariam os novos-ricos brasileiros de inveja. E também Audis, Mercedes, Volvos, Hummers e até Ferraris. O Brasil é um país injusto? Talvez Angola seja pior...”
Jornalista e publicitário, 54 anos, nascido em Miranda (MS), atualmente morando em Belo Horizonte (MG), onde ganha a vida com tradução, dando consultorias de comunicação, preparando cursos, palestras...
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