sábado, 27 de abril de 2024

A decoada, o armau e história de pescador no Pantanal do Nabileque

14 JUN 2023 - 20h48Por ANTONIO CARLOS TEIXEIRA

Às seis horas da manhã de quinta-feira, 8 de junho, pontualmente, deixamos Campo Grande pela BR-262 em direção ao Pantanal Sul-Mato-Grossense. O destino estava a 380 quilômetros de distância, dos quais 140 km de chão, a Fazenda Torrão de Ouro, na região do Nabileque, às margens do Rio Paraguai.

O grupo de quatro pessoas partiu com objetivo comum: pegar os peixes mais nobres do Pantanal, como pacus, dourados, pintados e jaús. Qualquer outra espécie inferior estava totalmente fora de cogitação. Além de praticar o ‘pesque e solte’, queríamos comer peixe fresco, acompanhado da bebida preferida, apreciando a beleza única do Pantanal.

Já pensou passar quase três dias em um dos rios mais piscosos do país e não saborear um bom pintado frito ou ensopado? Ou costelinha frita de pacu, ou mesmo assado? Seria vergonhoso para qualquer pescador que se preze.

Nossa turma era formada pelo advogado Alcides Ney Gomes, 51 anos, o representante comercial Jefferson Menezes, 36, o ‘Jefinho’, o empresário do setor de combustível Adaylton Guimarães, 58, o ‘Passarinho’, e este jornalista, 55.

No carro, lugar especial para as tralhas de pesca, como molinetes, caixa com anzóis e todo tipo de iscas. Os peixes não teriam do que reclamar. Havia de tuviras a moranguinhos, caranguejos, minhocas e massas variadas, como goiabada. Isso mesmo! Banquete completo com luxuosa sobremesa. O objetivo era ganhar boas fisgadas pelo paladar.

A viagem não tinha completado nem sua primeira hora, quando Adaylton, o ‘Passarinho’, deu sinal de que pegaria ‘Jefinho’ para Cristo. Com a calmaria do trânsito, uma vez que a rodovia ainda estava com pouco movimento no início da manhã, o mais moço da turma começou a cochilar. Sempre à espreita, ‘Passarinho’ não perdoava as “fisgadas” do amigo com quem dividia o espaçoso banco traseiro.

 

Ao meio-dia -- seis horas depois de deixar Campo Grande -- chegamos à sede da fazenda, de frente para o Rio Paraguai. Um luxo. Um presente da natureza. De propriedade de amigos residentes em Araçatuba (SP), esta e outras fazendas são gerenciadas por Olentino Sobrinho, o ‘Tininho’. Fomos muito bem recebidos pelo capataz Eduardo e por sua mulher, Ana.

Depois de almoçar a verdadeira comida da roça, fomos ajeitar as tralhas. Eduardo fazia os últimos ajustes no barco. De pronto, avisou: “Esse bicho é beberrão”, referindo-se ao consumo de gasolina do potente motor de 90 HP. Precavidos, levamos boa quantidade de combustível.

Por volta de 13h30, sol pantaneiro a pino, mas com o privilegiado coral do canto de várias espécies de aves, embarcamos para nossa primeira tarde de pesca no calmo, mas perigoso Rio Paraguai. Este rabiscador de palavras foi o único a colocar colete salva-vidas. Sem essa proteção, é como jogar martelo sem cabo na água

.

De barco, percorremos alguns metros com alguma dificuldade em decorrência da grande quantidade de camalotes, mas logo chegamos ao leito do majestoso rio. Quilômetros abaixo, ele se junta ao Rio Paraná e a rios do Paraguai, Uruguai e Argentina para formarem a Bacia do Prata, ligando o Atlântico.

O barco mal ancorou, preso a camalotes, e já jogamos os anzóis na água. Não demorou mais que um minuto para o advogado Alcides fisgar o primeiro peixe da turma. Expectativa era grande. A animação, no entanto, se desfez rapidamente ao avistarmos o exemplar capturado, na flor da água. Era armau, peixe com características pré-históricas. É, digamos, o peixinho feio de água doce. Rejeitado por pescadores, é pouco consumido. “O Doutor é fera!”, provocou ‘Passarinho’. Olhamos um para o outro e caímos na risada.

Dali em diante, começou nossa luta para tirar da água dezenas de armau. Em dois dias e meio, foram perto de 40 deles. Todos devolvidos ao rio. A cada exemplar fisgado – bom que se diga -- era uma isca que ia embora. Pior: essa espécie de peixe engole a isca toda, o que exige uma pequena cirurgia para tirar o anzol, sem machucá-lo por dentro.

No último dia de pesca, após dezenas de armaus fisgados inutilmente, Alcides e ‘Jefinho’ foram vencidos e investiram em anzóis menores. Cá entre nós, bem baixinho, para que ninguém nos ouça: eles apelaram para o bagre. E não é que deu certo? Apenas ‘Passarinho’ recusou-se a pescar. “Imagine se meu grupo de pesca me ve pescando bagre no Rio Paraguai? Eu ia morrer de vergonha”, brincou, com ar de bom pescador, mas que fisgou dezenas de exemplares do “peixinho feio”, razão pela qual recebeu o título de “especialista em armau”.

Os bagres salvaram nossa pescaria e alimentaram nosso desejo de comer peixe fresco no Pantanal. À noite, foram fritos pela Ana e saboreados com alegria e boas lembranças sobre as fisgadas dos armaus.

Mas por que o Rio Paraguai não nos contemplou com ao menos um exemplar dos chamados peixes nobres, como pacu, pintado, dourado e jaú?

De acordo com os funcionários da fazenda, houve decoada recentemente, levando à morte milhares de peixes. É um fenômeno natural que ocorre quando as águas dos rios do Pantanal avançam sobre as áreas secas da planície. Com a estação chuvosa, a vegetação e a matéria orgânica acumuladas são levadas para o rio, reduzindo o nível de oxigênio na água.

Depois da decoada, a maioria das espécies está em recuperação, sem forças inclusive para se alimentar. Menos o armau, cuja fome não escolhe iscas. Domina os rios nesse período e come o que tem pela frente. Por quase três dias, alimentamos cardumes de armau. “Fizemos bem à natureza”, era nosso argumento, em meio a muitas risadas.

E assim, voltamos para casa com menos culpa e dúvida sobre nossa capacidade de fisgar peixes mais nobres. E a certeza de que a falta dessas outras espécies no exuberante Rio Paraguai se deveu à decoada e não ao pé frio do Dr. Alcides, do ‘Jefinho’, do ‘Passarinho’, ou mesmo deste escrevinhador. O fenômeno nos salvou. E não é conversa de pescador. Os fatos gritam a nosso favor.

(*)  Antonio Carlos Teixeira é  jornalista, assessor de imprensa da Receita Federal, especializado em combate à corrupção e à lavagem de dinheiro pela Universidade Católica de Brasília (UCB).

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