domingo, 28 de abril de 2024
ENTREVISTA

Desastre ambiental: assoreamento avança sem controle no Pantanal

18 JAN 2024 - 11h24Por EDMIR CONCEIÇÃO/24H

A par de todos os estudos e ações no contorno do Pantanal e fora do contexto de ocupação e colonização do bioma, a visão sobre o ecossistema de fora da bolha traz impressionantes revelações de como se move a vida e como as defesas naturais reagem para que a existência dessa imensa planície alagada não seja afetada. Mas há um perigo que persegue, assusta e já sufoca. O assoreamento.

Quem traz essa visão de dentro do Pantanal é o ativista ambiental Nelson Araújo Filho, 61 anos, diretor do Instituto Agwa, focado em Soluções Sustentáveis no Pantanal. “O Pantanal está sendo impactado pelo assoreamento. Um desastre ambiental em andamento e ainda desconhecido”, alerta, em entrevista ao site 24H.

Enquanto reforça o alerta, Nelson Araújo Filho mostra que o Pantanal não se adapta, quem tem que se adaptar são os humanos. Não há atividade econômica a ser explorada, além das comunidades tradicionais, a pecuária extensiva, sustentável, e o ecoturismo, importante segmento para formação da consciência ambiental e geração de renda.

O Pantanal tem vida própria e não há risco de que possa vir a sofrer uma ocupação desordenada, segundo o ativista ambiental. O bioma seguirá protegido, pelas defesas naturais e pelas comunidades tradicionais, com o seu gado plenamente adaptado às condições extremas, próprias de um ambiente de beleza exuberante e ao mesmo tempo hostil a qualquer agente estranho à sua biodiversidade. Resta o único e assustador perigo: o assoreamento. 

Segue parte da entrevista:

1. O que move a vida no Pantanal? Como se dão os ciclos de seca e cheia?

Nelson Araújo Filho – Acredito que a água seja o principal personagem. O Pantanal brasileiro é uma planície de solo impermeável. O terreno alaga em parte do ano, por causa das chuvas e ganha volume mais expressivo com o escoamento da precipitação ao Norte, no chamado Alto Paraguai, que refere também aos rios Cuiabá e São Lourenço, os quais, mais o rio Taquari, formam a Bacia do Alto Paraguai. A dinâmica pode ser assim descrita: chove, a planície alaga, os rios engrossam e seguram a água acumulada nos terrenos em torno, sendo que suas águas também se expandem sobre eles. É a chamada “cheia”. As águas acumuladas descem ao Sul, pelas calhas e pelos campos. Por influência maior da vazão que vem do Norte, o Pantanal enche por etapas. O município de Porto Murtinho é o último. Para de chover, a planície seca. Vai até para o semiárido, inclusive com cactos. Além disso, o regime de águas alterna ciclos de predominância, que duram anos. Desconheço se há estudo que tenha apurado a média de duração desses ciclos. No ciclo de maior volume de água, as cheias são exuberantes, podendo cobrir quase toda a planície e elas avançam misturando os rios. É o que chamamos de “Mar de Xaraés”. No ciclo da seca, ocorre o inverso e, neste contexto, o fogo surge como um componente importante no sistema natural de equilíbrio da vida. Esse cenário, todavia, pode ter sido grandemente alterado pelo homem. Primeiro com o gado, que impactou o papel do fogo, ao reduzir expressivamente a massa vegetal de combustão. Depois, com a areia indevidamente derramada para a planície, pela ocupação do entorno, no planalto onde nascem os principais rios que cruzam o Pantanal. A areia provoca assoreamento e o alagamento permanente de parte significativa do bioma. Algo em torno de 5 milhões de hectares, dos aproximados 20 milhões do seu total."

Nelson Araujo Filho. Foto: Valetim Manieri

2. O bioma está vulnerável a quais riscos, o que ameaça o Pantanal? Há o risco de uma ocupação desordenada?

“A redução de volume de água que ingressa na planície é uma grande vulnerabilidade. Provavelmente a maior de todas. Há um grande alarde sobre a questão da água no mundo todo. E uma polêmica razoável também. Acredito nas alterações do clima, claro. Mas não tenho certeza das medidas, dos volumes, no que se refere ao Pantanal. O Marechal Rondon relata uma grande estiagem em 1889, que praticamente secou o rio Paraguai Mirim. Há também relatos orais dos efeitos expressivos da redução da água na Baía do Castelo e no Paiaguás, em outras épocas de seca, todas bem antes do debate atual. Então precisamos de pesquisas que apurem todas as circunstâncias. Sem elas, estamos no escuro. Não temos referências. Não podemos ter certeza. Não acredito na ocupação desordenada. O Pantanal é restritivo. Tem problemas de deficiência de nutrientes no solo. O fator água, na abundância e na ausência, restringe ainda mais qualquer ocupação. Esses eventos são naturais e constituem uma barreira eficiente. Não tem muito espaço para inventar. Para o avanço tecnológico que, de fato, poderia alterar o quadro, uma legislação mais recente definiu a proibição de espécies exóticas na planície. O mais importante é que a vocação da planície é a produção de proteína animal. Isso o homem não vai mudar. E para produzir tem que se adaptar às condições do meio. Não tem jeito. Então não vejo oportunidade para o desordenado. É economicamente inviável."

3. O Pantanal pode ser comparado a grosso modo como maria-sem-vergonha, capaz de renascer das cinzas, como se observou no último período de incêndios.

"A dinâmica da “maria-sem-vergonha” vai ser melhor compreendida quando conseguirmos ver o Pantanal antes do gado. Mas, sim, acredito nessa temática. Pantanal é resistência porque é lugar de extremos. Água e fogo, com maior intensidade do que hoje, eram os elementos naturais e o equilíbrio do bioma. A compreensão desse pêndulo vai também nos permitir entender o quanto ainda permanece do vigor da inata resistência pantaneira."

4. O que é mito e o que é verdade sobre o Pantanal e qual é a efetividade das políticas públicas de meio ambiente?

"Mito que muito se divulga é generalizar o evento do fogo no Pantanal. Incêndio, desde 2020, somente aconteceu nas áreas em que o assoreamento causou a inundação permanente, às quais, com o início do ciclo de seca naquele ano, viram ocorrer um grande recuo das águas e a exposição de imensa quantidade de massa vegetal aquática que, depois de seca, se não promoveu os incêndios, no mínimo, foi tudo o que a menor faísca mais sonhou. Pelo volume do acervo de material de combustão e considerando a extensão dos territórios atingidos pelo recuo das águas, ficou armado o circo. Já o Pantanal ocupado por atividade econômica, a pecuária, esse não ardeu até agora. Vamos olhar os mapas e conferir. Tá tudo lá. É verdade que quase não tem mais peixe no Pantanal do turismo de pesca. Já disse que não ponho fé em preservação sem dinheiro circulando. Política pública de meio ambiente ainda não abordou a questão da monetização do patrimônio natural. Temos uma grande preocupação doutrinária de um lado. A economia em trincheira oposta. O Estado vendendo meias verdades para o público e tendo que se renXder ao óbvio, fora dos holofotes. Nos Estados Unidos, os sistemas de parques nacionais movimentam bilhões de dólares e são de uso. São acessíveis. Estão disponíveis para a fruição. Se sustentam. No Brasil, parques são áreas proibidas para quem tem CPF e endereço. Na prática são entregues de graça ao tráfico, ao fogo e à outras tantas mazelas. O exemplo que dei não abrange ao todo, mas é uma referência bem visível de como se apresenta a política pública, onde não se considera a monetização."

5 – Dinheiro do BID, governo estadual, governo federal e o Taquari segue assoreado. Como curar a ferida do rio e conter o processo de assoreamento que já avança décadas?

"Isso não é pergunta. É convite de invasão em vespeiro. Vou responder de outro modo. O Taquary, por causa do assoreamento, desde 2019, não corre nos últimos 220, 230 kms em seu terço final. Com a calha completamente entupida, num ponto chamado Arrombado do Caronal, o rio sofreu o desvio de suas águas pela margem direita e promoveu a inundação permanente de 800 mil hectares na sub-região do Caronal e parte do Paiaguás. Foi há mais de 40 anos que esse processo teve início, gerando caos, expulsando, destruindo. Ficou por lá, nessa área do Caronal e Paiaguás invadidas pelas águas, um imenso alagado, onde a natureza promoveu um trabalho de restauração que resultou em cenários belíssimos. De tirar o fôlego. Tudo ali é só patrimônio natural. Nós, do Instituto Agwa, o chamamos de Payaguás dos Xarayés. Os projetos que você menciona não levam em conta sua existência. Mais hora, menos hora, o esplendor e a vocação econômica do Payaguás dos Xarayés vão estourar nas mídias. O Estado não é dono do patrimônio natural. Ele pertence à coletividade. O Estado tem o dever de proteger. Não pode destruir. Talvez sejamos, adiante, obrigados a repensar esses projetos. Não sou contra a ideias deles em si. Alerto apenas que partem de um único viés. Ouso dizer, provavelmente, ultrapassado. Digo mais, tem muito dinheiro do lado de cá também."

Leia a reportagem original: n24h.com.br

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