sexta, 26 de abril de 2024
CAMINHO DAS ÁGUAS-III

CORUMBÁ, BERÇO DE UMA CULTURA INFLUENCIADA PELOS RIOS DO PRATA

29 MAR 2021 - 06h00Por SÍLVIO DE ANDRADE

Quando o Rio Paraguai curva à esquerda e se espraia jogando água para o Canal Tuiuiú, um estreito que forma a Lagoa Cáceres, em Puerto Suarez, já em território boliviano, Corumbá surge à frente com seus prédios e a morraria do Urucum. A chegada ao porto geral da cidade sul-mato-grossense, com seu oponente casario, nos remete ao período do comércio efervescente naquelas barrancas, onde se atracavam navios transatlânticos.

O “regresso” momentâneo naquele tempo, nos dá a perceção do movimento de cargas de charques e peles e penas de animais do Pantanal, produtos de extração vegetal (borracha e a poaia), os finos tecidos e bebidas vindos da Europa. O entre e sai de pessoas da alta sociedade platina, comerciantes influentes. A moeda esterlina, a novidade do correio telégrafo, os casarões abarrotados de mercadorias. Uma cidade cosmopolita na isolada fronteira Oeste.

Circulando hoje por aquela orla urbanizada pelo programa Monumenta, na década passada, se busca entender, na realidade, o que foi esse período áureo do comércio pelo Rio Paraguai, entre o final da Guerra do Paraguai, em 1870, e meados do século XX. Sobraram os casarões como legado de um tempo em que Corumbá foi um centro de riquezas e da política e da força operária, passagem de grandes expedições, os primeiros jornais, influenciada pelos modos e requintes europeus e latinos.

Porto de Corumbá, 1910: transporte de cargas e passageiros na única rota de ligação com o resto do País e outros continentes, o Rio Paraguai

“Houve um tempo que Corumbá e Cáceres (MT) ficavam mais perto da Europa do que do Brasil. Era quando tudo o que se consumia nas cidades do Pantanal vinha pelos navios que singravam o Prata e o Paraguai. Isso criou ali uma cultura única de um povo que se vê como "correntino" pela relação que a navegação estabeleceu com Corrientes, na Argentina”, lembra o jornalista e publicitário Wilson Bentos, 54, sangue dos pampas e guarani.

Viajando no Fernando Vieira

“Há uma mistura de nacionalidades e um traço único dos brasileiros que vivem ali: somos do lado espanhol de Tordesilhas e, portanto, temos uma culinária com forte influência da Espanha, da Argentina, do Uruguai, da Bolívia e do Paraguai. Comemos locro, puchero, matambre. Usamos palavras como "solito", "bolita", "bolicho" e outras”, acrescenta Bentos, que também se lembra das influências rítmicas da guarânia, chamamé e polca.

Com a decadência, cidade vivenciou várias retomadas, dentre elas a do petróleo, "descoberta" de Monteiro Lobato

Com a reabertura da navegação pelo Rio Paraguai – o Brasil buscava, enfim, consolidar a nova fronteira abandonada –, a cidade passou a ter ligação direta com as capitais da Argentina e Uruguai, seja pelos navios cargueiros ou por meio do luxuoso Fernando Vieira, um cruzeiro para 100 passageiros de primeira classe. Depois, veio o Lloyde Brasileiro, que fazia viagens regulares também para o Rio de Janeiro, Cuiabá e Belém, de 1906 a 1934.

Corumbá era, na época, um porto tão importante como Belém ou Manaus. Tinha o “Bijou Theatro”, onde se apresentavam as principais companhias teatrais do Rio e cidades platinas. Com a construção da estrada de ferro Noroeste Brasil, no inicio do século XX, o eixo comercial foi deslocado para a cidade de Campo Grande. Os grandes comerciantes mudaram-se para os novos polos e o transporte hidroviário perdeu importância.

A decadência econômica, que perdurou por décadas, tornou o corumbaense um povo descrente, principalmente com os políticos e suas promessas vãs. A pecuária pantaneira se alavancou, veio o turismo, a partir dos anos de 1970, e a mineração se consolidou. A retomada do comércio fluvial, com o sucateamento da ferrovia, esbarrou-se em questões ambientais e na incompetência do governo em não enxergar as potencialidades do rio.

Prédio Vasquez & Filhos, no final da ladeira que dá acesso ao porto geral, hoje cartão postal visitado por milhares de turistas. Foto: Divulgação

Um museu a céu aberto

O Casario do Porto perpetuou uma época e tornou-se cartão postal de uma nova cidade, onde a alegria do povo contagia o visitante; onde os laços culturais se fortaleceram nas influências trazidas pelas águas, sejam platinas ou pantaneiras, cuiabanas. Hoje, Corumbá é a Capital do Pantanal, um dos principais destinos do turismo de pesca, de natureza e histórico. Seu porto movimenta agora as manifestações populares, na roda do cururu e do siriri.

A principal cidade desse rio, fundada em setembro de 1778, guarda a memória da ocupação da fronteira em seus primórdios por raças humanas e animais extintos. Seja por meio de fósseis do invertebrado Corumbella, de 550 milões de anos, encontrados nos paredões de rochas que a circundam; nos registros dos navegantes e aventureiros; nos sítios arqueológicos e inscrições rupestres, que permeiam os caminhos das águas; ou no patrimônio arquitetônico, um dos mais expressivos do Brasil colonial.

Um passado de pelo menos oito mil anos – dos ameríndios aos pioneiros pantaneiros - que pode ser revisto e contemplado no valioso acervo do Muhpan (Museu de História do Pantanal), montado pela Fundação Barbosa Rodrigues no prédio mais emblemático da rua Manoel Cavassa, no antigo porto, o Wanderley & Baís. Alí também funcionou a primeira sede da 14ª agência do Banco do Brasil, criada há 100 anos.

Forte Junqueira, construído logo após a Guerra do Paraguai

A cidade é um museu a céu aberto. Ainda no porto, o visitante conhecerá o prédio da primeira casa de renda, construído no final do século XIX, hoje sede do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artísticio Nacional), e a Casa Vasquez & Filhos, exemplar em art nouveau projetado em 1909 pelo arquiteto italiano Martino Santa Lucci. Sua beleza arquitetônica remete ao período de apogeu de Corumbá e hoje sedia a ong Instituto Homem Pantaneiro (IHP).

As fortificações pós-guerra

Subindo a Ladeira Cunha e Cruz, onde se deu o último combate na retomada de Corumbá, que ficou três anos sob o domínio paraguaio na Guerra da Tríplice Aliança, em 13 de junho de 1870, surge a Igreja de Nossa Senhora da Candelária. Foi construída em 1885 pelo polêmico frei Mariano de Bagnaia, preso e torturado em Assunção pelas tropas de Solano Lopez. Ainda hoje é atribuído ao padre, na crença popular, uma praga que teria rogado sobre a cidade.

As fortificações instaladas nas encostas, de frente para o Rio Paraguai, foram destruídas, assim como valiosos prédios históricos no centro. Contudo, duas fortificações centenárias, construídas após a guerra, estão preservadas e integram o roteiro turístico histórico. O Forte Junqueira, pequena estrutura em pedra com fundo para o rio, a leste, foi erguido em 1872 sobre escarpada formação calcária (rochosa). Seus canhões nunca foram ativados.

Instalada na vizinha cidade de Ladário, que foi bairro e depois distrito de Corumbá até os anos de 1950, o arsenal da Marinha é um complexo militar com jurisdição em toda a bacia e estrutura operacional fluvial e aérea. Com o governo reconhecendo a importância estratégica da região e sua fragilidade militar, a base naval de Cuiabá foi transferida para Corumbá em 1873.  O pórtico de entrada da fortificação se assemelha ao Arco do Triunfo, de Paris.

(Última reportagem: a passagem do telégrafo e dos trilhos, fortes Coimbra e Olimpo e o Saladeiro Cuê)

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