Hoje é 2 de novembro e por inúmeros e óbvios motivos a saudade me cutucou bem cedinho. Macambúzio, andando pra cá e pra lá, com "cara de tamanduá mirim na queimada", logo a minha mulher, que sabe tudo sobre o meu estado de espírito, veio em meu socorro e ordenou: “Escreva”, disse ela! “Vai te fazer bem!”
Então, aqui vão algumas reminiscências da minha vida de menino no Pantanal.
Para me situar no tempo e no espaço, corriam os anos cincoenta e a região do Paiaguás, que fica próxima à divisa com Mato Grosso, mais precisamente com o município de Poconé, partilhava usos e costumes daquele povo singular. Alí vivi a minha infância e tive o privilégio de crescer em meio a essa influência nortista muito original e exclusiva.
A migração para o sul do antigo Mato Grosso em busca de oportunidades, principalmente em busca de terras para a pecuária, trouxe em seu bojo a cultura, a mão de obra e um inegável modo de ser, que enriqueceu a história do Pantanal aqui do Mato Grosso do Sul. Dentre esses migrantes nortistas, os meus ancestrais maternos e paternos.
Para o meu texto de hoje, invoco a figura do meu pai, este poconeano de "tchapa e cruz", pois foi através dele que conheci a rústica e singela beleza do Cururu.
Para o espanto de muitos já vou dizendo que todo bom violeiro começava a construção da sua viola de cocho cortando árvore e matando animal.
Do Saranzeiro a madeira; das tripas do bugio, as cordas. O raro encordoamento com as cordas de aço "Canarinho" era reservado aos violões.
As cordas de tripa de bugio produziam um som levemente abafado, bem primitivo.
O Ganzá, feito de taquara dentada, no qual se esfrega uma pequena vareta de madeira, e duas colheres faziam o que se chama hoje de percussão. O resto era no gogó e nos movimentos de dança feitos pelos cururuzeiros. Mas esse era o Cururu tradicional.
Naquela noite, após um dia inteiro de campeada, já acampados nos ranchos - após um banho de cacimba e uma leitoa assada caprichosamente em seu próprio couro - o "luar sem defeito de abril", os sons que vinham dos brejos, a leve brisa noturna e aquela saudade perene que mora no coração de todo pantaneiro arrancaram um profundo suspiro do peito de Martimiano, nosso capataz, jovem poconeano criado em nossa fazenda. Apesar de levar uma vida de aventuras no lombo de seu "montado", naqueles momentos uma aflição consumia seu espírito. Queria gritar ao mundo a sua paixão.
O que fazer? Sacudiu as redes do Vico e do Peito Roxo e desafiou os dois para o Cururu. Mas não havia viola de cocho e nem um ganzá para fazer o rítmo. Pegou então dois pratos alouçados na cozinha e duas colheres. Com as costas de suas facas raspando na beirada dos pratos fariam o ganzá. As colheres separadas pelos dedos das mão, marcariam o ritmo, batendo-as contra os joelhos. Eram os instrumentos possíveis.
Eu e meu pai deixamos as nossas redes e nos abancamos nos tocos por alí espalhados. Alí, naquele ôco de mundo, estávamos prestes a presenciar algo inesquecível, a mais linda e pura manifestação artística da minha gente, deste povo do qual faço parte e admiro.
Umas pedrinhas de sal jogadas na boca para limpar a garganta. Um traquejo nas vozes para que saíssem limpas e fortes. A busca das primeira e segunda vozes, cantarolando abôios e melodias aleatórias. Por fim, um "bamo lá cumpadre..."
Para dar rumo e sentido à cantoria daquele momento, abrem com este verso:
" Eu suzinho no sertão
Padeceno meu amô
Ficano véio"
O espetáculo foi até altas horas. O sereno da noite molhava as palhas do velho rancho. A cada nota mais alta, os arancuãs respondiam em algazarra. Certamente animais noturnos vieram observar o movimento inusitado, e já se fazia tarde quando nuvens passageiras, como cortinas de um grande teatro, anunciavam o fim daquela apresentação de gala.
Todos procuraram o aconchego das suas redes. Um lobo guará procurando a sua fêmea foi a última manifestação daquele dia especial.
E quando se fez silêncio naquele ponto minúsculo do nosso planeta, sob a imensa abóboda estrelada, podíamos sentir a indiscutível presença de Deus.
Cansados depois de uma dura jornada adormecemos.
O outro dia chegou com os arancuãs e a certeza de estarmos em um lugar abençoado.
(*) Pantaneiro do Paiaguás, Corumbá MS
(**) Créditos
"Cara de tamanduá mirim na queimada”, expressão cunhada pelo pantaneiro Luiz Guilherme Lacerda.
"luar sem defeito de abril", Manoel de Barros em Sonata ao Luar
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