segunda, 12 de maio de 2025
ARTIGO

"Hirrrúúúú!" Crônica da Nhecolândia, 1964

29 ABR 2025 - 09h21Por ANTONIO ROBERTO DE ARRUDA

Era 1964, e o Pantanal ainda se movia no ritmo das águas, dos bichos e dos homens simples que sabiam mais das estrelas do que dos mapas. Eu tinha 14 anos, e a vida parecia tão grande quanto as invernadas alagadas da Nhecolândia, distrito de Corumbá, no então jovem estado de Mato Grosso do Sul.

Naquela época, o Pantanal ainda era território de respeito mútuo entre homem e natureza. Não havia cercas de arame farpado separando o boi da onça, nem leis engessadas que tentavam ensinar ao pantaneiro o que ele já sabia de nascença. Era uma convivência feita de sabedoria prática, passada de pai pra filho, de comitiva pra comitiva.

Lá, o fazendeiro não era predador: era guardião. Defendia o que era seu, sim, mas antes de tudo cuidava. Era o primeiro a apagar fogo no campo, a soltar peixes nas vazantes, a deixar as revoadas de tuiuiús em paz. Só se matava bicho quando era preciso — e a onça, apesar de símbolo sagrado do mato, às vezes precisava tombar.

Foi numa dessas que vivi o maior susto da minha vida. Meu pai decidiu que era hora de eu “virar homem”. A desculpa era uma caçada de tatu, mas no fundo ele sabia que a lição seria outra. A água estava alta, e fomos de chalana, cortando o espelho d’água entre capões e acurizais, com Nequinho na proa — o baixinho de Ladário, valente que só vendo, bigodinho de Cantinflas e zagaia na mão.

Levamos quatro cachorros bravos, o Sr. Walter com sua flobé, meu pai com a Winchester, e eu... com medo escondido no meio do peito.

Nequinho, cacerense de nascimento, era desses homens de lenda: pescador de rodada, mestre do churrasco, cantador de siriri e cururu. Naquela manhã, ele equilibrava-se na corda da chalana como se dançasse com o rio. De repente, fez sinal com a mão. Meu pai cortou o motor. A chalana embicou devagarinho no capão.

Os cachorros saltaram e saíram farejando. Nequinho desembarcou com a zagaia firme, vasculhando o mato como quem lê um livro aberto. Meu pai o seguia. Sr. Walter vinha atrás. E eu... vinha onde dava, tentando não mostrar que o coração já batia no pescoço.

Foi aí que os cães acuaram a onça. Uma tensão no ar, como o silêncio que antecede a tempestade. Nequinho se virou pra mim e mandou o recado:
— “Vamo aprendê a sê homi, guri. Num caga na calça não... num quero guri fidido na chalana!”

Mal acabei de engolir o medo, a bichona pulou. Não vi de onde veio, só escutei o grito:
— “Hirrrúúúú!”

E, logo em seguida, o estouro da flobé.

Quando dei por mim, a fera jazia no chão. E ali mesmo, entre o barro e o silêncio da mata, os homens fizeram o que era de costume: esfolaram a onça, limparam o couro, salgaram. Nada era desperdiçado. Nada era feito por vaidade. Meu pai se aproximou, limpando a mão no pano amarrado à cintura, e falou com firmeza:

— “Essa não come mais novilha.”

Foi assim que aprendi, naquele pedaço de mundo escondido entre corixos e vazantes, que o respeito é o que define o verdadeiro pantaneiro. Não se mata por gosto. Mata-se quando o mato exige, quando a economia grita, quando a criação está em risco. Mas, mesmo nesses momentos, se honra o bicho, se agradece em silêncio, se continua.

Hoje, lembrando dessa aventura, penso em como o mundo mudou. Fala-se em conservação como se fosse invenção nova. Mas o Pantanal já sabia de tudo isso muito antes — só que com menos palavras e mais ação.

E ainda escuto, no fundo da memória, o eco do grito de Nequinho: “Hirrrúúúú!”

(*) Licenciado em Estudos Sociais pela UFMS .
 

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