Na planície pantaneira água é vida e toda enchente e toda seca deveriam ser fenômenos naturais. Não são, quando provocados por ação humana. Vide, a catástrofe do Rio Taquari, que provocou alagamento permanente em milhares de hectares, com irreparáveis prejuízos sociais, econômicos e ambientais.
Digo sempre que o nosso papel no Pantanal se assemelha a uma das atividades do comércio. Nós somos os varejistas do processo, a natureza cuida do atacado. Usufruímos uma mínima parcela daquilo de que dispomos. A natureza dita as normas gerais de uso, e as regras são muitas.
A vigência e as alterações desse regramento determinam a tempestade ou a bonança para nós pantaneiros.
lsto, claro, considerando o pantanal que historicamente conhecemos e do qual tiramos o nosso sustento. Se, em algum futuro, um outro Pantanal vier a existir e a sua exploração passar a ser outra, então direi que "o futuro a Deus pertence."
Hoje, a incontestável razão da nossa sobrevivência se deve a essa multissecular capacidade de observar e obedecer aos fundamentos da Mãe Natureza.
Vivi a seca dos anos sessenta, alternando ausências e presenças nos períodos de férias universitárias. Os anos setenta, até a enchente de setenta e quatro, vivi-os aqui no batente, dirigindo os interesses da família enquanto os irmãos terminavam seus estudos.
Vislumbrou-se, à época, o fim do Pantanal. Mesmo nos meios acadêmicos foi decretada a sua sorte. Seríamos um deserto, com toda certeza.
Obviamente, diante de tantas opiniões, passamos a ver o nosso futuro com uma certa dose de angústia e pessimismo.
Devo dizer, no entanto, que demoramos a apostar nessa terrível profecia e, quando essa catástrofe parecia se avizinhar, eis que veio a grande enchente de 1974 e, depois dela, um longo período de águas altas.
Tal era o espirito dominante que fomos pegos desprevenidos. Não exatamente pela enchente em si, mas, pela sua dimensão. Já não lembrávamos de como eram as grandes enchentes. Ocupamos cada palmo de terra onde pudéssemos levar os nossos rebanhos. Terras altas e terras baixas.
"Essa água de que falam quero tomar no tereré". Um pantaneiro velho e experiente cunhou essa frase. Foi a sua ruína. Dele e de muitos que não atentaram à máxima de José de Barros, o velho Jejé: "Se chover, enche!" E aqui vale lembrar Venâncio de Barros, que, pelo sim, pelo não, deixou as áreas baixas, vendendo gado tão logo soube do perigo. Mas, e se não encher? Perguntaram a ele. "Melhor se arrepender por ter vendido do que por ter perdido". Essa máxima sempre esteve presente em nossas atitudes. Conhecemos os nossos limites.
Hoje, com a seca dos últimos anos, enfrentamos situação próxima àquela dos anos 60. Temos, no momento, enchentes setoriais. Está longe de se poder falar que o Pantanal está cheio. Também as manhãs já estão frias e o céu, literalmente, é azul celeste.
Então, a natureza está a nos dizer que teremos seca e fogo na planície. E é este o motivo deste texto.
Nenhum de nós, gigantes ou pequenos proprietários, temos a capacidade de dominar um possível incêndio que possa vir a ocorrer em nossas terras. Nenhuma providência que possamos tomar impedirá a propagação de um fogo, tenha a origem que tiver. Seja por raio, combustão espontânea, proposital, por descuido ou maldade de alguém. Podemos e devemos coibir o fogo irresponsável, isto deveria ser um dogma, mas, a responsabilidade objetiva, como é prevista em lei, nos tornará a todos criminosos e nos levará à falência a julgar pelas multas confiscatórias aplicadas e as despesas com os possíveis processos. Criou-se um clima de terror no Pantanal como em nenhum outro setor da sociedade brasileira. Logo, onde temos o bioma mais preservado do país. E não porque houvesse rigor legal no passado, mas pela vontade própria da sua gente.
Enquanto únicos responsáveis pela sua conservação, ajudamos a construir este tesouro brasileiro.
Não temos capacidade de intervir nas propaladas mudanças climáticas, sejam elas o que forem.
Temos dado o melhor de nós nos últimos séculos de ocupação desta planície.
Produzimos e conservamos esta riqueza hoje tida como universal.
Em qual mente caberia a maldade de pensar que desejamos destruí-la? É a nossa casa e a nossa sobrevivência. Cuidamos com esmero e comprometimento. A nós coube - e sempre caberá - o mesmo papel de cidadãos conscientes que sempre fomos no trato deste patrimônio brasileiro.
O mesmo não se pode dizer do poder público, em todas as instâncias. Uma breve reflexão e podemos concluir que muitas das consequências que hoje provamos se explicam pelo total e secular abandono imposto a esta sofrida população.
Antes, porque o Estado era continental, depois, porque a divisão não saiu como queriam?
Quem vai ficar com o Pantanal? Que gente é essa que ficou por lá.
Pantanal significa um lugar longínquo.
O sinônimo de Pantanal é dificuldade. E quando se reivindica o progresso, aí então o Pantanal é intocável.
Conhecida moeda de troca, quanto este Estado progrediu às custas do nosso sacrifício. Quanta restrição de uso desde que um certo deputado federal teve a infeliz ideia de incluir o Pantanal no capítulo dos patrimônios nacionais na Constituição Federal de 1988.
A cada seis meses nos trancam as portas para o futuro com exigências descabidas. Nada pode, tudo é proibido. Quando é permitido, é impraticável.
Enquanto isso o planalto enriquece, nos devora e depois nos vomita ao perceber quão indigestos podemos ser.
Essa dinheirama toda que virá para o MS terá contrapartidas amargas para o pantaneiro.
"Reserva do Alagado do Taquari", pois sim, não importa o absurdo que significa preservar o desastre, o que importa são os dólares que virão para a alegria de poucos.
Assim desapareceram, historicamente, as verbas e os projetos para o Pantanal.
Nestes tempos, o novo apelo é o fogo. Sempre tudo de afogadilho, sem um plano adequado para o desenvolvimento da região. Todos os anos são milhões em recursos federais. O presidente de República aparece na foto com um chapéu de palha, arrumado às pressas por algum puxa saco, para parecer integrado aos costumes; as ONGs se locupletam e ao pantaneiro caberá cuidar para que o desastre não aconteça. Tenham dó!
Chega a ser ridículo que até os dias de hoje não se conheça o porquê dos " corredores de fogo" existentes às margens de rios e rodovias... Ou se conhece e nada se faz. Ou mesmo, e isso seria insuportável, se eles servem para alavancar recursos.
E apenas algumas categorias de pantaneiros tem a obrigação da prevenção? Para alguns o fogo é cultural e aí não se toca?
Com todo respeito às diversas autoridades envolvidas, vamos nos esforçar para alcançar as metas estabelecidas. Mas, convenhamos, dos pantaneiros que vivem da terra, a sua imensa maioria não possui e nem pode contratar serviços de máquinas para aceiros em suas propriedades. Há um grande engano no imaginário da população, das autoridades e da mídia em geral quanto à condição econômica dessas pessoas. Pouca gente faz ideia da condição financeira e dos custos de uma atividade neste mundo de meu Deus. Poucos têm outra fonte de renda para garantir investimentos fora de uma programação ajustada. Ademais, aquilo que se retira hoje, amanhã rebrotará.
Tenho absoluta certeza de que todos gostaríamos de ter as nossas cercas aceiradas todos os anos, mas não temos e existem muitos outros motivos para tanto. As dificuldades são inimagináveis para muitos de nós.
Os equipamentos menores de combate, havendo participação em grupo, seria algo mais plausível. A formação de brigada vai merecer um grande esforço dada a carência e a inconstância da mão de obra em todo o Pantanal.
Faremos, com absoluta certeza, o melhor possível, mas sabemos que nada disso vai resolver o problema. Será apenas uma demonstração do nosso engajamento obrigatório nesse esforço decretado pelo poder público. Fogo atravessa os nossos rios todos os anos e não será o aceiro que irá impedi-lo de se alastrar onde venha ocorrer.
Como colaboração e, julgando exprimir o pensamento do pantaneiro, proponho aquilo que mais se aproximaria de um resultado razoável, que seria o investimento maciço em estradas; pistas de pouso nas margens dos rios e no interior, com postos de reabastecimento; postos avançados de guarnição de bombeiros; postos de saúde; escolas; veículos e aviões adequados; lanchas velozes; uma política ambiental que considerasse os conhecimentos científicos que definem o Pantanal como uma savana inundável e que necessita do fogo. Por fim, que os nossos saberes sejam acolhidos como algo de grande valor para a salvação do Pantanal.
Isto posto, digam-me, senhores e senhoras, este paraíso vale isso ou não?
(*) Pantaneiro do Paiaguás, Corumbá
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