domingo, 05 de maio de 2024

Um Causo de Pescaria

19 SET 2023 - 19h02Por MANOEL MARTINS DE ALMEIDA

Hoje, esta velha cervical, onde os psitacídeos de todas as espécies e plumagens deixaram seus bicos, não permitiria esse tipo de aventura. Vou narrá-la no intuito de resgatar a memória de bons momentos vividos junto a grandes companheiros nesta querida planície pantaneira.

A Estrela D'alva, que voltava da sua longa viagem noturna, anunciava um céu de brigadeiro para aquela promissora manhã.

Era abril e a fria aragem matutina anunciava um outono de pouca chuva e de rápida vazante das águas. Um tapete de flores amarelas começava a colorir os brejos.

Avizinhava-se a Semana Santa, dias em que os peixes desaparecem. Era preciso precaver- se.
O "porto" era sob um tarumeiro de copa esparramada, na frente da fazenda.

 As zingas e os caniços, ambos tirados no taquaral da tapera de Leonardo e Izidora, já estavam na canoa, caprichoso trabalho do Dandão em um cambará maduro e gigante lá dos lados do Morro do Campo. Alguns anzóis "cabeça de negro", forjados com o aço das molas de velhos colchões, artesanato corumbaense do bairro da Cervejaria, já  enrabichados; um carretel de linha para o caso de ataque das piranhas; algumas goiabas verdolengas; uns pedaços de queijo bem curtido e sapecado; um pedaço de músculo cardíaco da matula carneada há três dias e já em estado de putrefação; um porrete surrupiado do galpão, daqueles que se usa para casquear os cavalos; um sapicuá com as tralhas do mate e do guaraná; um buchinho recheado, cuja guarnição era mandioca frita e rapadura; um porongo de água fresca para o "guara" e o tereré perfaziam a nossa carga naquela madrugada. Um pedaço de lona arranjado de última hora protegia nossas tralhas.

Modesto, mais prático do campo, assumiu a proa; Silvério, na popa, era quem executava as manobras. Era coisa de se ver, dois hábeis canoeiros em plena função. A destreza com que fizeram a canoa deslizar sobre a água mostrava o talento daqueles ótimos companheiros de aventura.

 Alcançamos o Corixo do Lobo e por ele descemos até o rodeio do Areiãozinho, uma légua rumo noroeste. Daí pra frente, já seriam enchentes dos rios Paraguai e São Lourenço. Águas de peixes graúdos.

A "montaria" deslizava por entre camalotes e pequenos arbustos que riscavam com zunidos seus costados. As zingas nos salpicavam com a água fria da madrugadinha quando cruzavam de um lado para o outro da canoa. Os cuidados a se tomar eram com os "bolos" de formigas fogo, que caem para dentro da embarcação, e com as "sassoranas" rabo de veado, mimetizadas nos galhos do canjical baixo, que, ao mínimo contato, provocam dores insuportáveis.

Devo dizer que me senti uma privilegiada criatura de Deus quando mais uma vez descortinei a natureza do baixo Pantanal. Indescritíveis os aromas, os sons e as cores daquele amanhecer paiaguense. O gado, alojado nas partes mais altas, saiam das malhadas; os pássaros da alvorada pareciam saudar os canoeiros; a flor do pombeiro perfumava e dava um toque de magia àquele cenário fantástico.

Assim chegamos ao rodeio do Côcho Comprido, próximo ao Corixo das Piranhas, onde paramos para atender os "vícios" do guaraná ou da erva e tirar a água do joelho. Cada um satisfez sua vontade e só então começamos a pescaria.

Ali se deu o milagre da multiplicação. Com iscas preparadas em casa e outras recolhidas no caminho dos tucunzeiros e canjiqueiras começamos a festa. Os pacus, em cardumes, "faziam lombo" na flor d'água. Qualquer coisa que usássemos como isca, não errando a fisgada, era mais um peixe no saco amarrado à canoa.

Aos poucos, porém, fomos abandonando a embarcação e com "água de meia costela" íamos "batendo" e "rufando" os sacos com pacus de bom tamanho.

Parávamos para uma prosa de quando em quando e assim foi até que o sol quente expulsasse os peixes dos descampados e cansaço e fome nos trouxessem ao mundo real. Escolhemos uma sombra e enfiamos o bico da canoa na zamboada. Matuleamos, jogamos alguns camalotes sobre o saco de peixes para que se mantivessem frescos e tomamos rumo de casa. A Semana Santa estava garantida.

Foi um dia inesquecível e abençoado. Voltamos com a sensação de sermos os maiores pescadores do mundo e conscientes da graça que é viver no Pantanal. Contudo, a nossa pressa em chegar era para “cartear” junto à peonada.

Com a irremediável divisão patrimonial, esta área da fazenda ficou para meus irmãos que a venderam. Arrendei por uns tempos do primeiro comprador, mas a idade já havia chegado e com ela os papagaios e seus bicos aduncos. O Silvério mudou-se para a cidade e se aposentou como motorista de caminhão; o meu compadre Modesto foi prestar serviço em outras fazendas.

Tantos anos se passaram desde então e tudo se torna uma doce lembrança que, de tempos em tempos, faz com que este velho bugre tente matar a saudade contando esses "causos" aos que queiram conhecer como era a nossa existência naqueles bons tempos de paz, neste mundo chamado Pantanal.

(*) Pantaneiro do Paiaguás, Corumbá (MS)

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