quinta, 02 de maio de 2024
ARTIGO

Dentro da Terra, dentro de mim

"Tive a sensação de estar num cone e não escutar nada além do meu coração"

16 FEV 2024 - 13h21Por ZECA CAMARGO

Quatro minutos de descida. E durante o trajeto, só me lembrava de um dos desenhos animados favoritos da minha infância: “Viagem ao Centro da Terra”.

O título remete ao clássico de Júlio Verne, que era a inspiração das aventuras da TV. Porém, só fui ler o livro já adulto.

A não ser que você tenha algo como meus 60 anos ou ser apaixonado por um “cartoon vintage”, a referência talvez lhe tenha escapado. Mas enquanto meus colegas dos primeiros anos de escola sonhavam em ser astronautas, eu só queria entrar para o time de exploradores do professor Lindenbrook.

E mergulhar no nosso planeta. 

A associação era inevitável: suspenso por uma corda, livre por alguns instantes dos pensamentos, forçado a ajustar meus sentidos, eu deixei minha memória correr solta nas sinapses. E elas vinham furiosas, a cada centímetro que eu descia do Abismo Anhumas.

Sim, eu estava de volta a Bonito (MS) – e dessa vez, enxergando tudo! Leitores assíduos deste espaço devem se lembrar da primeira vez que fui para esse paraíso e, inadvertidamente, me esqueci de levar lentes de contato descartáveis que corrigem minha forte miopia.

Imagine minha frustração de estar num dos lugares mais belos do mundo e ver tudo fora de foco... O único alivio, como contei, foi flutuar no rio Sucuri, uma vez que a refração da máscara de snorkel na água corrigia minha visão.

Desta vez, semana passada, eu estava preparado: levei lentes para um mês na mochila! E me lembrei disso também enquanto descia no abismo. E agradeci a mim mesmo por conseguir ver cada detalhe desse lugar tão maravilhoso.

Mais de uma vez já dividi aqui com você minha preferência por cidades nas minhas viagens.  A coluna anterior, dedicada à frenética Bancoc, foi mais uma prova disso. Mas quando um espetáculo da natureza me pega de jeito, eu perco o eixo.

Assim como nenhuma foto que tirei lá conseguiu capturar o esplendor daquelas formas, por mais que eu escolha bem as palavras para descrever o abismo, elas não serão suficientes. Tudo parece soar técnico demais.

Uma descida de 72 metros até a superfície da água. Um facho de sol preciso que entra para iluminar as estalactites e estalagmites, além de outras formas oníricas. Um lago azul escuro cristalino. Uma paz...

Não estava sozinho. Viajei dessa vez com um grupo de amigos e uma equipe de filmagem. O silêncio, uma vez que se chega à pequena plataforma flutuante que nos permite observar tudo, é desejado, mas impossível.

Mesmo assim, entre suspiros de estupefação dos meus colegas e discretas instruções para as gravações, tive a sensação de estar num cone isolado, que não permitia que escutasse mais nada além do meu coração.

E o que ele estava me dizendo era forte demais: toda a turbulência dos dias, toda a violência e a ternura de afetos antigos e recentes, todos os elogios e os insultos colecionados, todas as experiências que às vezes não conseguimos traduzir em compaixão.

Era uma cacofonia que eu não conseguia controlar e nem sabia se era bem-vinda. E que se tornou ainda mais ensurdecedora quando mergulhei naquele espelho gelado. Até que de repente tudo finalmente se emudeceu. 

E o que eu tinha era apenas meu corpo, livre, flutuando, em perfeita conexão com tudo. Tive a lúcida certeza de que, no fim de tudo, caminhamos como nós mesmos. Uma ideia que ali, submerso naquele abismo, não me pareceu apavorante, mas libertadora. 

Ali, no centro da Terra, estava inteiro, abraçado por tudo que vivi. Triste e esperançoso. Cansado e renovado. Fragmentado e por inteiro. Só e infinito.

(*) Artigo publicado pelo jornalista, apresentador e autor de "A Fantástica Volta ao Mundo", em seu blog na Folha de S. Paulo, sobre a experiência que viveu em sua viagem a Bonito

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