quinta, 02 de maio de 2024

"Ameaças são naturais, desastres não"

31 JAN 2024 - 10h38Por AFONSO CELSO VANONI DE CASTRO

A frase do título consta da capa do site do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN) e sintetiza: chuvas, tempestades e ventanias, são fenômenos naturais, mas as tragédias que provocam são resultado da ação humana.
 
Assim, acontece com as enchentes e com as inundações que todo ano acometem a cidade de São Paulo: são uma construção social motivadas por decisões políticas apoiadas em paradigmas técnicos que, desde meados do século 19, privilegiaram interesses de determinados grupos, negligenciando a capacidade natural dos rios da cidade no controle das cheias e excluindo parcelas de sua sociedade.
 
Os planos urbanos adotaram um modelo que privilegiou a mobilidade com a construção de avenidas nas áreas dos vales fluviais, ocupando as várzeas que eram as áreas naturais de cheias e implantando um sistema de drenagem com infraestruturas em concreto (cinza) para conduzir as enxurradas com mais velocidade, afastando rapidamente as águas das chuvas.
 
Dessa forma, ocuparam as áreas das cheias, ampliando a expansão urbana e impermeabilizando as várzeas inundáveis. Criaram um zoneamento de uso do solo abstrato sem incluir nos mapas, com restrições de uso, as zonas de inundação ocupadas. Como a chuva continuou a cair e a correr para os fundos de vale e para as várzeas, essas regiões transformaram-se em "zonas de risco".
 
A estratégia adotada passou a ser a de "realocação de espaços" com a construção grandes obras como os piscinões para compensar a ocupação das áreas das águas, e transferir os volumes de escoamento das cheias para jusante. Mas por serem soluções localizadas para uma questão que envolve grandes extensões das bacias hidrográficas, terminaram por criar problemas (acúmulo de lixo, transferência das inundações etc) sendo rejeitados pela sociedade.
 
Essa estratégia se apoia na noção equivocada de que a água da chuva é um resíduo, contribuindo para o paradoxo da escassez hídrica e das enchentes que vivemos em São Paulo. A água da chuva é um recurso valioso, essencial para a retroalimentação do ciclo hidrológico. Deve ser conservada, filtrada e infiltrada no solo.
 
Várias cidades no mundo promovem a revisão de paradigmas técnicos incluindo medidas conservacionistas de drenagem, as chamadas Soluções Baseadas na Natureza (SBN), como parques lineares e reservatórios pluviais. Alguns desses conceitos foram incorporados em planos urbanos de São Paulo, como os Cadernos de Bacias, mas ainda não saíram do papel. Prevalecem as soluções tradicionais de infraestrutura cinza.
 
Em São Paulo o enfrentamento das disparidades socioterritoriais é fundamental para equacionar esses problemas e não reproduzir o processo desigual de produção do espaço urbano. Não é possível recuperar a qualidade das águas das bacias urbanas, sem a universalização do saneamento básico. evitando que a concentração de ações de recuperação ocorra apenas em áreas de baixa vulnerabilidade, promovendo uma “modernização ecológica” de bairros de renda média e alta. As vulnerabilidades sociais e ambientais são faces da mesma moeda.
 
Apesar de iniciativas como do Plano Diretor de Drenagem e do PlanClima SP, que reconhecem a intensificação das chuvas, no que concebe à gestão das águas na cidade, falta uma coordenação integrada e efetiva entre os diferentes setores da administração que articule planos urbanos e a gestão de desastres; que amplie e universalize o acesso de todos às redes de infraestrutura básica, que supere as vulnerabilidades socioambientais da cidade, preparando-a para eventos futuros.
 
Enfrentar os problemas de enchentes na cidade não implica apenas em modificar aspectos tecnológicos, estrutura institucional, regulação e outros elementos do sistema existente. É essencial direcionar as políticas e sua aplicação para todos os territórios, buscando alcançar uma urbanização abrangente que atenda plenamente às suas necessidades sociais e respeite os condicionantes ambientais.
 
 (*) Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackzenzie
 

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