Naquela manhã de dezembro o aguaceiro ainda não tinha se apoderado do Pantanal. A chuvarada da madrugada não tinha branqueado o pátio, eram apenas poças d’água e cantiga de sapo. A criançada correndo, fazendo o de sempre, secando pote e cangando grilo. A cozinheira ensopada com o calor insalubre, fritava bolinho de chuva ouvindo um chiado que vinha do rádio, de vez em quando se ouvia parte de uma melodia que tirava um rebolado da desejada. O almocinho já tinha sido servido e a peonada já ia longe na gravanha.
Duas coisas assombram o pantaneiro: espírito de outro mundo e gente a pé. Aqui, andar a pé só para ir do galpão para o comedor, da rede pro banheiro para dar uma desprezada. De resto, naquele tempo, era montado ou em carro de boi.
Quem primeiro avistou aquele homem a pé, na porteira do pátio da Fazenda, foi Topete de Mutum, chefe da gurizada. Saiu correndo gritando, as mulheres se embolaram dentro de um quarto e trancaram a porta, os homens estavam pro campo, só sobrará o praieiro. Zé Quati era manco da perna esquerda, náfico da geometria, como dizem os pantaneiros. Sua maior característica era a lentidão, um observador, remoedor de tempo.
“É você, Zé Quati”, falou firme a Floriza. “Enfrenta a criatura...!”
O coitado, sem escolha, seguiu lentamente em direção aquele homem a pé com um pedaço de couro no lombo. Ficaram frente à frente, cada um de um lado da porteira, o diálogo que se seguiu merece estudo psicológico e sociológico.
“Bom dia, você vem de onde?”, perguntou Zé Quati
“Do mundo”, respondeu o homem.
“Vai para onde?”, voltou a perguntar, com voz trêmula, Zé Quati.
“Pro mundo”, respondeu o errante andarilho.
Zé Quati olhou para o chão ainda molhado, calculou tudo como um moderno gps e falou:
“É por ali, atravessa aquela outra porteira e segue”.
O homem deu um sorriso sincero e seguiu para o mundo.
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