Pantanal é universo sem retoques e seu pilar é o homem – o ser humano – com seu falar cantarolado, melodioso, doce, pausado e objetivo. Sim, o pantaneiro em si e com seus adereços e paixões é a alma daquela região alagadiça que a Unesco define por Reserva Mundial da Biosfera e a esperteza ambiental rotula de Santuário Ecológico, com o sacro no título como parte da política que defende a exclusão da atividade econômica em sua área. Esse mundo de água, terra, mato, bichos, chuvas e sol é o tema do folhetim da TV Globo que apresentou seu primeiro capítulo ontem (28) com a chancela de Bruno Luperi e um elenco de ponta. Não assisti a primeira versão da trama, na Manchete, que a apresentou há 32 anos e, portanto, não posso traçar comparativo entre ambas, mas de uma coisa tenho certeza – e lamento – a ausência absoluta do pantaneiro dá o tiro de misericórdia no campo da apresentação da região ao Brasil na medida em que o vazio demográfico regional é preenchido em sua totalidade por figuras que não se identificam com a terra, suas raízes, costumes e sotaque. Uma pena, pois a massificação pela telinha global violenta o nosso Pantanal naquilo que ele tem de melhor: a alma de sua gente.
O linguajar da novela nos empurra para o piracicabanismo na base do ‘Árco’, ‘Tarco’ ou ‘Verva’ e nos afasta das raízes do Pantanal com aquele sotaque que entendemos por ser dito pausadamente, pois se fosse aos trancos e barrancos necessitaria tradução: Jhonzin matãaao de aula ou o famoso e clássico adeus mortuário: Quem bedjô, bedjô; quem não bedjô num bedja max.
A novela engoliu o linguajar pantaneiro. Roubou do peão o chapéu de palha carandá, pois sem ele o homem sente-se despido no contexto do seu visual. Não valoriza seu Cavalo Pantaneiro, a única raça equina genuinamente brasileira e que é paixão em todas as fazendas, comitivas de boiadas e nas Cavalhadas em Poconé; o amor pelo animal é tanto que, que dele surgiu o bordão: Cavalo Pantaneiro; que não tem compra, pede emprestado ou rouba, mas não fica sem. E exclui da telinha o melhor amigo do homem, também no Pantanal – o cachorro, leal, valente, vigilante, que ajuda conduzir a boiada, alerta sobre bichos e afugenta a Pintada que ronda a bezerrada.
O Pantanal tem alma. Suas intermináveis planícies cortadas por corixos repletos de jacarés, lontras, capivaras, peixes, tuiuiús, garças, talhamares e biguás têm baixa densidade demográfica, mas aqui, ali e acolá uma sede de fazenda ou barraco mostra que a vida se faz presente e orgulhosa no bom sentido dos sobrenomes que carrega: Arruda, Ewbank, Costa Nunes, Falcão, Gomes de Arruda, Costa Marques, Dorileo, Gahyva, Proença, Nunes da Cunha, Lacerda Cintra, Pereira Leite, Paes de Barros, Almeida Lobo, Nunes Rondon. Sim, o lado pantaneiro de ser começa pelo falar, o que lamentavelmente a novela não conseguiu entender o que um simples vôte pode significar nem levou em conta a dimensão de um agora que, qué esse, xomano?
Falta, como falta o linguajar pantaneiro na novela. Com naturalidade e espontaneidade um diálogo da dupla Nico&Lau no enredo daria cara pantaneira ao folhetim; um desabafo de Totó Bodega nos remeteria ao Pantanal. Pena que a globalização insista em mostrar um Brasil uniforme no falar, nos costumes, na vida, quando sabemos na prática que não é assim. O tchê não pode ser arrancado da garganta gaúcha, nem o uai ou o trem do mineiro ou o vixe da baianidade. A sabedoria popular nos ensina que cada roca tem seu fuso, cada povo tem seu uso.
O Cavalo Pantaneiro, creio, deverá ocupar espaço na novela por seu aspecto comercial, econômico. Para o Pantanal é o animal mais indicado para a lida com o gado. Com a casqueadura moldada para o ciclo das águas, a raça resiste bem ao fenômeno minhoqueiro e, nos períodos de enchentes literalmente pesca o capim no fundo do aguaceiro. Nas Cavalhadas ganha tanto ou mais destaque do que os grupos de mouros e cristãos que travam batalha por uma rainha presa na torre de um castelo.
Não é necessário ser pantaneiro para se saber da identificação do homem com seu cachorro. Basta ir à região. O cão está presente em todas as comitivas de boiadas, no entorno de todas as casas na zona rural.
Em 2020 o casal Glória e Tutu Falcão de Arruda foi vítima do fogaréu que varreu o Pantanal; perto da casa deles na fazenda Pombeiro, em Poconé, o rio Cassange secou e não restou uma árvore sequer no entorno de sua morada, pois as labaredas foram devastadoras. O gadinho Tutu conseguiu recolher ao curral, com a ajuda da cadelinha da família, a Nega, que teve as quatro patinhas queimadas, e segundo dona Glória, recebeu tratamento como se fosse filha do casal. O trabalho feito sob forte sol e alta temperatura por conta do fogo na vizinhança foi amenizado pelo chapéu pantaneiro de Carandá, que a novela não levou em conta.
O primeiro capítulo foi o suficiente. Mudarei de canal no horário dos demais. Vejo o Pantanal agredido pelo agrotóxico dos chapadões de Tangará da Serra, Nova Marilândia, Diamantino, Chapada dos Guimarães, Campo Verde, Poxoréu, Rondonópolis, Alto Garças, Alto Araguaia, Alto Taquari e Jaciara, que drenam para os rios Paraguai, Cuiabá, São Lourenço e Taquari; pelo garimpo de ouro em Poconé; pelo esgoto sem tratamento lançado em suas águas pela capital, Várzea Grande, Cáceres e outras cidades; pela ganância do homem. A força destruidora do Pantanal é muito grande e, sem condições de reverter essa realidade vejo-a cotidianamente há mais de meio século. A esse desconforto não somarei o outro, de presenciar na telinha colorida em horário nobre uma novela que inconscientemente dá o tiro de misericórdia na região ao arrancar a alma do homem pantaneiro.
(*) Pantaneiro de Poconé (MT)
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