sexta, 26 de abril de 2024

A malhada (parte final)

04 MAI 2022 - 22h04Por MANOEL MARTINS DE ALMEIDA

Na volteada do dia anterior, no Campo do Meio, que era uma invernada de duas léguas quadradas, ao cruzar o Corixo do "Móia Cola", Benedito Silva viu um estradão fundo de gado que havia descido dos lados do Caronal do Correntino, tradicional malhador do gado nos dias de frio. "Palpitando" que o gado teria subido para as áreas mais altas e de caponais escolheu "sondar" essa malhada. Não era tão longe da sede e o número de reses deveria compensar o serviço". Pegou “batida" pra trás para ver se confirmava sua expectativa. De fato, ao chegar ao local e dimensionar o tamanho do malhador e a grande quantidade de estrume novo, concluiu que dormiram ali na noite anterior, e que o número oscilaria entre oitocentas a novecentas reses, contando com o gado miúdo. Ficou na espera, fora dos trilheiros e pacientemente observou o cair da tarde, acompanhando pensativo as aves que passavam em formação buscando também um pouso seguro. Assim como as aves, o gado também anda aos lotes e não foram poucos que pode observar a caminho da malhada.

Era quase noite fechada e ainda chegavam os retardatários: rezes magras, cochés, touros erados, vacas que ainda procuravam a cria, etc. O seu cálculo do número de reses deveria estar bem aproximado, pelo que viu chegando para o pouso. Antes, ao percorrer o local - um grande rincão de caronal -, verificou todos os trilheiros que davam acesso à malhada e "estudou" as possíveis saídas do gado, bem como as posições onde colocar um ou mais peões para fechá-las. Definiu o lado da chegada com gente e tropa para escorar o gado. À noite, depois da janta, pensou toda a estratégia a ser aplicada. Era o que ia pensando madrugada a dentro montado em seu cavalo escolhido para aquele dia. Vi Benedito dar laçadão em cima desse animal. Às vezes me cedia, mas, cavalo bom com peão ruim fica ruim.

Enquanto troteavam riscou um fósforo e olhou o relógio Ômega, de bolso, que trazia no compartimento próprio da guaiaca - dizia: “relógio é oméga; revólve é chimite”. Se orgulhava de ter o melhor.

Sabia que os touros saem mais cedo e ele queria leva-los ao mangueiro. A madrugada era fria e não havia luar, o que garantia que o gado ficaria mais tempo na malhada.

Faltando uns mil metros do local, recomendou silêncio à peonada. Na verdade, ninguém abriu a boca durante o trajeto e alguns certamente dormiram ou lutaram contra o sono o tempo todo. Chegar era tudo o que queriam.

Um capado gordo que estava no lavador cruzou por eles e lamentaram a situação, ainda bem que não levaram os cachorros, senão seria um barulhão e o gado certamente correria da malhada. Serviu para acordá-los. Mas o juraram de morte.

 A duzentos metros do local, pararam para ouvir o gado. Tudo quieto. Benedito apeou, no que foi seguido pelos companheiros. Alguns arrodeiam a sua montaria, outros se viram de costas e, todos, mijam o primeiro mate do dia. Alguns cavalos também aproveitam a parada e bufando, como se sentissem grande alívio, empesteiam o ar com o cheiro forte da urina.

Chegaram cedo. O vento estava certo, isto é, do gado para eles. Poderiam fazer um foguinho para aquecer as mãos encarangadas. Alguém lampinou um galho, tirando a parte úmida e fez ótimos gravetos, outro sacrificou parte do papel de cigarro que trazia no bolso da guarda, um chapéu escorou o vento e o "marca olho" foi riscado. Protegida com as mãos em concha a pequena chama logo era uma labareda. 

Era pouco fogo para tantas mãos, mas era melhor que nada. A sensação de conforto e a conversa abafada fazia daquele momento algo especial. Todos com as mãos em busca do calor, naquela noite gelada, fora do aconchego de suas casas, faziam um quadro de grande significado humano, formavam um bom grupo, unido pelo mesmo propósito de cumprir uma tarefa nada fácil. No momento, o sono e o frio do amanhecer eram os grandes inimigos.

O vento abrandou com os primeiros sinais da aurora. A passarada começou a algazarra e então ouviu-se o primeiro berro. É sempre um som solitário, como se houvesse um sentinela para anunciar o dia.

Benedito manda cada um para seu posto nos trilheiros, com a recomendação de que se aproximem lentamente até que avistem o gado. Em uma ressaca de mato, bem protegida, a malhada apresentava alguma dificuldade para fechá-la. Benedito ficou com Alício Peito Roxo, seu irmão Goiô e Martimiano. Ficariam com a tropa que estava um pouco afastada com dois para segurá-la.

Com Goiô, certa vez, fiz uma troca, proposta por ele. Queria uma sanfona de oito baixos, uma "pé de bode”. Mandei vir de Corumbá. Ele me deu um cavalo de sua propriedade a que chamou Recuerdo.

Enfim, as rezes se movimentaram e os cavaleiros foram aparecendo para elas. Benedito assobiando foi se aproximando, os cavaleiros dos trilheiros também. O gado se levanta todo e nesse momento Peito Roxo "sopra o chifre" chamando pra ele toda a atenção. Para esse momento é um toque grave e doce, quase um carinho com o gado. Benedito, calmamente, como quem nada quer, vai entrando no meio do gado, sempre falando, aboiando, assobiando e logo percebe que a malhada está dominada. Tira o chapéu para agradecer ao santo de sua devoção e espantar as "porvinhas". Olha ao seu redor e sente um justo orgulho de estar fazendo um bom trabalho com o rebanho da fazenda. O gado está manso. Essa mansidão é fruto de muitas madrugadas feitas e muito bom trato, com "rodeios" frequentes, sal no cocho e umbigo curado. Ele próprio possuia um rebanho considerável que criava nos campos da fazenda.

Feito isso, dá sinal que devem tirar o gado para o largo, onde será olhado e quando receberá o primeiro manejo, ainda em campo aberto.

Alício Peito Roxo toca o berrante e o seu cavalo de nome Segredo se posiciona. Nessa hora o toque é alegre e alto, cabendo até um floreio "malicioso". Alício é ponteiro desde guri. Filho de sea Antonia, assim como Goiô, seu irmão mais velho. Queria ser mecânico, mas não deu certo, e quando deixou o Pantanal foi ser motorista do meu avô, em Corumbá.

Os cabeceiras assumiram os lugares e os fiadores foram se posicionando à medida que o gado caminhava. Benedito ia na culatra com Odenil, seu ajudante de ordens.

Levariam o gado até o cocho mais próximo.

Chegando, manda Odenil "cortar" os espetos, fazer o fogo e pôr as carnes para assar. Caxinque "dá de rédea" e vai ao primeiro "caponete" cortar espetos e varinhas para "abrir as carnes”. Em seguida, escolhe uma beira de mato protegida do vento e dá início ao que de melhor fazia, assar churrasco, coisa que aprendeu com seu pai, churrasqueiro da fazenda nas festas do santo padroeiro.

O gado está acomodado no cocho da Baia do Pato e Benedito chama o Martimiano para "pescar" os bezerros do gado alheio, das vacas "das crianças" e  das suas próprias para "picotar" a orelha. É hora da mamada e torna-se mais fácil saber quem é filho de quem. Esse gado vai para o mangueiro já marcado de sinal na orelha porque no brete se torna difícil reconhecê-lo. Quando o vizinho manda o "acompanhador", ele mesmo tem a liberdade de "sinalar" os seus bezerros. Neste dia não veio ninguém, todos estavam trabalhando o gado e a confiança entre vizinhos sempre foi um grande diferencial pantaneiro.

Martimiano Gonçalves de Arruda, filho de Nha Maria Papuda, uma das pessoas mais incríveis que conhecí. Sensitiva excepcional, parteira famosa do Pantanal, exímia tecelã, espirituosa e amiga. Ele, meu compadre e amigo.

Nesse meio tempo, o Benedito desaparece, mas todos sabem que é a sua hora sagrada e caçoam sempre. Ele mesmo dizia que se deve dar espaço para que falem mal do capataz. Depois, é rédea curta.

Benedito procede a análise daquele gado quanto ao seu estado corporal, a "força" da bezerrada, a quantia e idade dos touros, vacas "falhadas", possíveis "matulas", vacas peitudas(mastite), gado adulto sem marca etc .Para cada caso um procedimento futuro no mangueiro, ou ali mesmo no rodeio.

Odenil avisa que o churrasco está pronto. Benedito escala a metade para a primeira turma. O restante cuida do gado. Depois, trocam de posição. A "chaculateira" está no fogo chiando. Cada um corta um pedaço de carne e vai jogando a farinha na boca com uma destreza impressionante. Não suja nem o bigode. A rapadura tanto pode ser apreciada com o churrasco ou como sobremesa. Comeu, tomou uma ou duas guampadas de erva e vai substituir o companheiro. Essa é a hora do relaxamento e das brincadeiras. Cada um conta um causo engraçado sobre mulheres, festas, carreiradas, viagem com gado, apelidos e toda espécie de molecagem. Caxingue era um comediante nato e fazia com que todos gargalhassem.

O primeiro que termina vai juntar a tropa que sai pastando no rumo da fazenda, é só ir atrás. Formada a tropa, entre dois laços amarrados a uma árvore cada um pega o seu e do companheiro que está no gado. Caxingue apaga o fogo, guarda o resto da carne no apicuá, tora uma rapadura nos dentes, bota um pedaço no bolso da baldrana, encilha seu cavalo e vai tomar o seu lugar na culatra.

Benedito então dá o sinal de marchar. Alicio dá o seu toque "vamos pra casa", os cabeceiras se posicionam, os fiadores "fazem" o gado e a culatra tenteia até que pegue rumo, então empurra com calma, cuidando dos bezerros e vacas que se procuram num berreiro ensurdecedor e maravilhoso para qualquer criador pantaneiro. Daí para o mangueiro. Bem, mas aí já é outra história.

Minhas homenagens a todos esses meus heróis, que muito me ensinaram da luta campeira e da própria vida. Foi ao lado deles que passei a minha infância e parte da juventude. O Pantanal deve muito a essa gente que ajudou a consolidar a riqueza que é a nossa pecuária e a estabelecer esta cultura maravilhosa do Homem e da Mulher Pantaneiros.

A eles dedico este singelo texto

(*) Pantaneiro, Fazenda São Camilo, Paiaguás de Corumbá (MS)

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