quarta, 11 de dezembro de 2024
GUILHERME RONDON

"Bem que eu devia dali nunca nem sair"

14 JUN 2017 - 11h49Por Sílvio Andrade
Guilherme nos banhados da Barra Mansa: momento de oração e agradecimento. Foto: arquivo pessoal

Mundo de aguapé
Parece ilusão
Água de cristal, doce visual
Um céu tão azul

A letra da música Paiaguás, em parceria com o carioca mais mato-grossense Paulo Simões, exprime o olhar, o sentimento e a sensibilidade desse paulista de coração pantaneiro, um ícone da música de Mato Grosso do Sul, e defensor do Pantanal - tal qual foi seu pai, João Victor de Barros. Aos 65 anos, o engenheiro civil Guilherme Rondon, da quarta geração de descendentes do sertanista Cândido Mariano, trocou a profissão e a cidade pela música e o isolamento nesse paraíso, como guardião de um patrimônio familiar de pioneiros - e da natureza que o cerca.

“A grande ameaça do pantanal são as pessoas inescrupulosas, que não tem carinho com a natureza. O turismo pirata está acontecendo muito. Os jipeiros entram em caravanas pelo Pantanal, invadem propriedades, acampam, deixam lixo, espantam os bichos, causam incêndios. Onde chega o homem, chega a destruição. O Pantanal mais preservado é aquele lugar de difícil acesso. O homem pantaneiro está aqui há 200 anos e mantém intacto seu pedaço de chão. Nossa região do Rio Negro e abençoada, a maioria das pessoas que moram aqui é preservacionista. Isso deu certa paz na região”.

Sem reconhecimento no Estado, onde se considera “um estranho no ninho”, mas idolatrado nos grandes centros e no exterior pelo seu talento como cantor, instrumentista e compositor – são sete CDs, um DVD, mais de 140 músicas gravadas por mais de 65 interpretes, dois prêmios Sharp -, Guilherme é um ser privilegiado pela família que tem – casado com Claudinha Medeiros, três filhos (Daniel, Mariana e Gabriella), cinco netos, um sexto a caminho – e a forma que escolheu para viver e desfrutar a vida. Passa grande parte do ano no Pantanal, na companhia de Polaca, sua cachorra boxer de nove anos, falando com os pássaros, tomando banho nos alagados, e, claro, compondo, compondo...

Guilherme, o neto Chico, de quatro anos, e a inseparável Polaca, nas águas da Barra Mansa: reencontros que revigoram. Foto: arquivo pessoal

Polca ou chaminé
Primeira canção
Roda o tereré, canta quem quiser
Lua vai ouvir
Bem que eu queria dali nunca mais sair

Não é fácil ficar longe da família, mas o que lhe conforta é saber que está mantendo em pé uma das heranças deixadas pelo pai, a Pousada Barra Mansa, em Aquidauana (MS), destino de ecoturismo que atrai principalmente estrangeiros, e a espera ansiosa pela visita dos familiares, em especial os netos. Quando sobra um tempinho, ele pega uma ave de metal – definição sua para o “aviãozinho” monomotor – e vai para Campo Grande, ou estica as “férias” até São Paulo, onde se identifica com a selva de pedra e se sente em casa, cercado de amigos, a maioria músicos, “bebendo” cultura.

“Passo maior tempo no Pantanal. Há 20 anos a fazenda da família transformou-se em pousada, é uma coisa que exige muito a presença da gente. É um lugar que gosto muito, não posso dizer que moro aqui, mas é como uma dedicação exclusiva. Tenho uma ligação grande com esse lugar, fui criado no Pantanal até os 8 anos de idade. Então, aqui é meu lugar, é o que me faz suportar toda essa pressão de trabalhar com turismo, prestar um serviço num lugar distante, isolado. Por aqui vou vivendo esse visual natural, assistindo a essa crise de longe”

A facilidade da comunicação virtual também minimiza a distância da família e o músico criado no Pantanal do Paiaguás, em Corumbá, recorre às redes sociais para suas reflexões sobre a natureza deslumbrante, com a qual convive, a inspiração aflorada refletida no pôr-do-sol que doura o céu, ou, simplesmente, a cantoria dos pássaros, que lhe sopram acordes ao vento. Guilherme tem presença assídua, por exemplo, no Facebook, postando fotos maravilhosas, revelando seu olhar mágico para esse ambiente que o moldou um defensor intransigente. “Hoje o dia terminou lindo”, comenta foto de um pôr-do-sol e seus raios refletindo-se na vazante.

“40 dias no Pantanal...”, suspira, compartilhando suas emoções. “Sem calçar sapatos, sem usar documentos, carteira, sem trancar portas, sem lidar com dinheiro, às vezes na solidão total; às vezes convivendo com pessoas interessantes de várias partes do mundo. Duas musicas novas, algumas parcerias se iniciando, muitas fotos e a alma leve... E, assim, vou vivendo a vida do jeito que ela pode ser... Gratidão ao Divino”. E, no final do dia, posta uma foto do entardecer, carregada de poesia: “O sol precisa se pôr/Pra que a manhã se levante/E o meu coração é semelhante”.

Guilherme recebe muitos artistas de renome nacional na pousada. Um dos visitantes ilustres foi Lenine. Foto: arquivo pessoal

A saudade chega traiçoeira
E arrodeia nosso coração
Feito brasa que não é fogueira
Mas clareia e se vê na escuridão

Autor de todas as melodias, Guilherme gravou na fazenda, no ano passado, o básico do seu último CD independente – Melhor que seja raro -, uma obra prima desconhecida dos sul-mato-grossenses, nunca ouvida nas rádios locais, mas elogiada pela crítica especializada. A música título tem a participação especial de Zélia Duncan. Revelado para a música na mesma onda onde surgiram Almir Sater, os irmãos Espíndolas e outros, sempre tratou com intimidade guâranias, polcas e chamamés, influenciado por outros gêneros musicais, em especial o cancioneiro fronteiriço.

Depoimento de Zélia Duncan: “Guilherme Rondon é do Pantanal, mora no Pantanal, respira aquela caprichosa natureza. Quando essa informação me chega, já ouço pássaros, vejo horizontes, águas, sons. As fotos que Guilherme posta na rede têm música implícita. Arcos de instrumentos, sorrisos de flores, cores que cantam. O álbum de Guilherme começa a tocar desse mesmo jeito, abrindo espaços com melodias que aconchegam, arranjos e músicos já acostumados com mergulhos profundos”.

Vizinho do violeiro Almir Sater, que também contribui para a conservação do Pantanal, Guilherme se apegou à rotina e à vida sem a pressa do pantaneiro. Depois de alguns rodeios para encontrar um “jeito” de falar com a reportagem de Lugares, o compositor de Vida Bela, Vida se surpreendeu transmitindo áudios desta entrevista pelo WhatsApp, direto da fazenda, numa dessas noites de luar e solidão. “Porra, cara, é a primeira vez que estou dando uma entrevista pelo Whats. Tô achando isso muito louco”, se manifestou, curtindo aquele momento único, surreal.

“Minha rotina? É acordar cedo, trabalhar dia todo e dormir tarde. Quase não sobra tempo para tocar ou compor. Nos últimos tempos, raramente pego no violão, mas, ao mesmo tempo, ano passado gravei um disco, bem na temporada do turismo. Não tenho hábito de ficar compondo, como uma coisa diária. Mas basta ficar um ou dois dias sem ter compromisso que a musica volta e entro ao meu processo criativo. Acho que é muito importante isso, nessa fase da vida, aos 65, continuar produzindo, fazendo musica, uma coisa paralela a minha vida. Não tenho tempo de me dedicar profissionalmente à musica, mas continuo fazendo musica”.

Velhos amigos quando se encontram: Guilherme e Almir Sater (com a esposa) no pesqueiro do violeiro. Foto: arquivo pessoal

E segue falando: “Prazer aqui no Pantanal é essa sensação de liberdade, de estar ainda num lugar onde não tem violência, uma paz natural. Ficando aqui a gente entra em alfa, nos remete às lembranças da infância. A família gosta muito, tem muito amor pelo lugar. A gente não ganha dinheiro com turismo, mas tem o desfrute, a possibilidade de estar num lugar onde as pessoas pagam muito caro para visitar. Aqui ainda é um lugar de paz no mundo, um bom refúgio, longe de qualquer tipo de tormenta, catástrofe. O Pantanal é um ótimo refugio, um lugar lindo e com qualidade de vida maravilhosa”.

www.guilhermerondon.com.br

www.hotelbarramansa.com.br

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