domingo, 19 de janeiro de 2025
ARTIGO

Weslleysson, o novo peão pantaneiro

22 JUL 2024 - 09h23Por MANOEL MARTINS DE ALMEIDA

Leio o impecável texto do primo Leonardo de Barros no Facebook e me ponho a pensar em como foi possível que essa cultura campeira nos tenha sido tirada de maneira a dela estarmos hoje resgatando cenários e histórias distantes.

Preciso contar a história do Weslleysson, menino pantaneiro nascido no "fria" do Paiaguás que, junto a seus pais e irmãos, mudou-se para a cidade, onde chegou cheio de espanto e municiado de sonhos infantis.

Seus pais, Gonçalo e Sebastiana, foram em busca da vida prometida pelas conversas do rádio e da televisão, atraídos pelo sonho de dar escola aos filhos, assistência médica, diversão, coisas diferentes da vida pantaneira, que o poder público teima em não proporcionar.

"Acertaram de contas", juntaram os trapos e pegaram a primeira lancha rio abaixo. Na cidade uma pensão para os primeiros dias, depois "assiste" na casa de um compadre até achar um lugarzinho para a família. O tempo voa e as despesas correm na frente.

O pai agora vive longe da família, pois o seu ofício na cidade pouco ou nada vale. Precisa boiadear nas comitivas de leilão. Um mês fora; uma semana em casa.

Tirou dinheiro adiantado e por isso o saldo é pequeno. A carne abundante, o leite, os produtos da roça, a moradia gratuita são coisas do passado. O aluguel é caro. A cesta básica não basta. O armazém não vende fiado. A carne gorda exibida no balcão do açougue é um escárnio. 

No estradão a comida é boa, mas em casa ele sabe que os cintos estão apertados. Sente um certo remorso e uma tristeza profunda. A cerveja é cara, o corote é a solução. E  assim as coisas vão piorando.

A filha de catorze anos, Kellyanne, já lhe deu uma neta que mal conhece. O pai é um garoto sem eira nem beira que a iniciou na arte do funk.

O filho mais velho, Weslleysson, hoje nos seus dezoito anos, enturmado com a patota do crack, é convocado para o batente. Os estudos (???) vão de mal a pior e as companhias não são recomendáveis.

“Procure um emprego, meu filho”, diz o pai, jogando fora os planos de ter um filho "estudado". Quem sabe o velho patrão contrata você pra trabalhar na fazenda. 

O rapaz tinha outros planos. Tinha uma namorada. A descoberta do sexo fácil o fascinava. Como largar tudo aquilo? E, depois, o que sabia ele da lida campeira? 

A sua mãe, percebendo o impasse, propõe uma estratégia : -“empresta a tralha de seu tio que está encostado pelo INSS e vai, meu filho, vai trabalhar, você aprende e logo será um campeiro como seu pai”. 

No matriarcado pantaneiro a palavra da mãe é sentença a cumprir.

A tal tralha do velho tio, entretanto, se transformou na prestação do sofá lá da Gazin. Weslleysson foi assim mesmo, na cara e coragem.

Trajando uma camiseta regatas, um tênis multicor, um boné atravessado na cabeça que exibia um cabelo amarelo citrino, uma calça jeans apertada a la João Dória, um piercing no nariz, um lado de brinco e um correntão de cantor de rap, apresentou-se ao seu possível futuro empregador.

Vencidas as surpresas e as apresentações, a entrevista é desabonadora. Saiu cedo do campo e na cidade nada aprendeu. Entretanto, muito mais que um desejo de trabalhar, ele precisava de um emprego para ajudar em casa.

O velho patrão, mesmo porque peão campeiro é raça em extinção, decidiu por contratá-lo.

“Seus documentos, pergunta!

“Só tenho registro de nascimento”, fala, constrangido.

Dezoito anos, só sinal de orelha! A peregrinação em busca de documentá-lo será missão quase impossível. CPF, Título de eleitor, alistamento militar, identidade, carteira de trabalho. Para o RG é necessário fazer agendamento. Título só no período não eleitoral, alistamento só com outro documento, etc,etc. Com sorte , em dois meses o brasileiro se arruma.

O futuro dirá se ali nasceu um peão pantaneiro. 

Na maioria das vezes, os jovens desistem ou apenas procuram manter-se no campo de alguma forma, mudando de emprego a cada trinta dias, tempo suficiente para juntar um dinheiro que lhe permita entregar algo em casa e comprar algumas pedras de crack ou algumas gramas de maconha para quebrar a dura abstinência.

Não aprenderá o ofício. Não trançará um laço. Não cortará com machado. Não ordenhará uma vaca. Não domará um cavalo. Apenas chegará magro e abatido e retornará gordo e sadio. Voltará a sua figura pitoresca para poder se enturmar novamente.

A pecuária pantaneira se encontra sem a mão de obra necessária, formada no aprendizado do dia a dia, no exemplo dos mais velhos. E destes, restam muito poucos.

O poder público, grande responsável por essa desgraça social, cumpre, com absoluta competência, a tarefa imposta pela legislação inconsequente e pelos interessados em despovoar o Pantanal para fins inconfessáveis.

Weslleysson e sua irmã Kellyanne são produtos de um crime praticado contra um povo que surpreendeu o mundo por sua capacidade de sobrevivência em um ambiente inóspito, transformando-o, embelezando-o, e, principalmente, conservando-o para o orgulho de toda a humanidade.

Para Weslleysson a sua adolescência não finda na bela laçada narrada com perfeição pelo Leonardo de Barros, mas na primeira "pitada" de crack em uma "boca" da periferia. A ronda do laço na vaquejada urbana o derrubou.

*Pantaneiro do Paiaguás, Corumbá MS
 

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