sábado, 20 de abril de 2024

TAPERA PANTANEIRA

30 ABR 2022 - 18h53Por MANOEL MARTINS DE ALMEIDA

Gosto de taperas. Vejo nelas um quê de ancestralidade.

Então, fui dar um volteio pela rancharia abandonada da minha velha fazenda. Parei no primeiro rancho já envolto pelo cipoal de escova de macaco e melão de São Caetano.

Uma brisa da nascente me trouxe o aroma próprio das capoeiras misturado ao cheiro de lugares esquecidos. Me aproximo da velha morada e, de pronto, reconheço na retidão dos esteios que, na teimosa agonia sustentam o peso dos anos e da história daquele lugar, o conhecimento da natureza pelo individuo que escolheu aquela madeira e o esforço humano na sua construção. Na perfeição dos cortes constato a perícia adquirida em anos de manejo do machado.

Os tarecos espalhados pelo chão batido ditam o perfil da gente que ali esteve. Como em uma escavação arqueológica posso ver, pelo tipo do objeto ou utensílio, em que épocas distintas ali estiveram e em que grau civilizatório viveram.

Uma velha e amarrotada bacia que por certo servira para os banhos do bebê e lavagem das roupas pendia da ponta de um mourão, onde, certamente, servira de canteiro para as indispensáveis cebolinhas e pimenta malagueta que deram cheiro e sabores ao delicioso caribéu. Cacos de um pote rústico guardam em seu bojo restante uma foice de cabo e gavião quebrados, utilizada, talvez, para fazer os gravetos que dão, junto às pontas roubadas das palhas do rancho, o início ao fogo nas madrugadas. 

Lá fora, um pouco afastada, a privada de buraco e tábuas, da qual restava apenas um odor desagradável e abrigava mamangavas enfurecidas. Uma cacimba aterrada era explicada por uma trave despencada, de onde pendia a alça de um balde e um toco de laço.

O resto do que algum dia foi um pilão traz à baila o velho costume universal de moer os alimentos para melhor aproveita-los. Arroz em casca? Milho? Carne seca? O sal grosso? Seriam desse tempo em que se comprava arroz com casca? Teriam plantado uma rocinha de milho e mandioca para o consumo próprio, alimentar as galinhas e cevar os leitões capturados nos brejos da fazenda?

Como seria a hierarquia familiar?  A quem caberia tal tarefa de socar o pilão? Seria um casal? Haveria filhos? Posso ouvir a modinha cantada ao ritmo das batidas, algumas brejeiras, e outras canções de solidão, de desejos contidos, de saudade e de perdas. 

Feixes de luz que vazavam pelo barrote cortavam em fatias um fogão de cupinzeiro construído sobre um jirau de carandá, escurecido e desbarrancado, exibindo as cinzas quase petrificadas, talvez do último fogo ali aceso no corre e corre da mudança e da sofreguidão da nova vida, novos ares, novos caminhos. O picumã que enegreceu as poucas palhas da trança dizia que não havia chaminé - ou que de nada servira.

À medida que me movimento, sapinhos lenguê buscam proteção sob os baldrames que sustentam o barroteamento feito de estacas de carandá, cobertas com massa de barro e estrume de gado. Um curimpapão com seu rabo erguido percorre a viga que sustenta os caibros de pindaíva e passa para o outro cômodo, onde, talvez, aquele casal tenha conhecido a suprema emoção de uma primeira noite de amor.

Teriam construído uma vida juntos a partir daquele lugar? Por onde andariam? Penso que, onde quer que estejam, jamais se esqueceram daquela morada e, se nada material guardaram daquele tempo,  em seus espíritos e na memória devem ouvir o som do vento, a algazarra da passarada e dos bugios ao amanhecer, o primeiro choro do bebê nascido ali naquela rancho, à luz da lamparina, tendo apenas os dois por testemunhas.

Saio daquele transe expulso pelos marimbondos, que em voo picado miram o meu rosto e dos quais me livro usando o meu chapéu com extrema violência, no sentido de afugentá-los. Vou para a claridade e ao passar a porta desmancho uma preciosa renda, esculpida no pó do chão pelos delicados pés das rolinhas Picuí.

Cupinzeiros escuros formados na ponta da cumeeira, furados na superfície, mostravam a presença dos pica-paus, certamente de todas as espécies. Sobras de couro cru roídas por polias, espalhadas por todos os lados, eram diversão para os guaraxains.

Um tarumeiro cinquentenário projeta a sua sombra vespertina sobre algo que, talvez, tenha sido uma bancada e um tendal, onde carnearam, salgaram e secaram as carnes de caetetus, queixadas, porcos monteiros e outros animais consumidos. Ganchos de vergalhões enferrujados serviram para pendurar as canelas, costelas, espinhaços, miudezas e algum pernil que ficou para ser temperado e assado no forno de barro, feito certamente com capricho, mas que mais servia de ninho para as galinhas e do qual hoje resistia apenas a sua base de madeira com cacos de tijolos mal queimados.

Um pedaço de arame farpado ligava um dos oitões do rancho ao tarumeiro e dele pendia, esfarrapada pelas ventanias, uma velha calça USTOP (ustópi) com uma só perna sobrevivente. Esta calça situou no tempo aquela família por volta do início setenta.

Procurei alguma plantação e distingui em meio à zamboada um limoeiro que fora galego, mas que o limão rosa, o cavalo da enxertia o matara. Agora este lutava pela vida em meio a um imenso formigueiro de carregadores.

Já se fazia tarde e a juriti que chamava seu amado para o ninho me trouxe de volta à realidade.
Porém, não estava encerrada aquela viagem imaginária. Era necessário encontrar algo útil para levar comigo, alguma coisa que pudesse me ligar àquela história inventada. Procurei já no lusco fusco do entardecer algum objeto ou qualquer coisa que me ligasse àquelas vidas. 

Escurecia e nada encontrava, foi então que a última réstia de sol iluminou as tábuas já meio despregadas da porta de entrada do rancho e pude ver, emocionado, gravado na madeira, um coração com as palavras: “aqui viveram José e Maria”. 

Amo as taperas, elas nos relembram coisas esquecidas e suas histórias nos inspiram na busca das nossas próprias taperas e, certamente, de nós mesmos.

(*) Para meu pai, Manoel Augusto Martins de Almeida, no 52º ano de sua morte

(*) Pantaneiro, da Fazenda São Camilo, Paiaguás de Corumbá.
 

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