Pouco tempo atrás inventei a história de um peão pantaneiro a quem dei o nome de Weslleysson, bem assim nórdico mesmo, quase viking, como tem sido batizada a nova geração desta planície brasileira.
Fomos, em passado distante, descobertos e colonizados pelos ibéricos, portugueses no Brasil e espanhóis nas vizinhanças. Natural que atendêssemos pelos mesmos nomes dados aos naturais da heróica península europeia. Era comum dar nomes de santos da igreja católica, fé professada pelos colonizadores. Os próprios párocos sugeriam os nomes de acordo com o calendário festivo da igreja. Nesse aspecto era quase um "Roma locuta, causa finita".
Este meu novo personagem, agora real, claramente, assim como seu irmão Carmo, tem os seus nomes trazidos do vizinho Paraguai. Carmo tão lá como cá; Ramón por lá, Ramão por aqui!
Seu Ramão, como é tratado, tem quase a minha idade, mais novo dois meses, sou de fevereiro, ele de abril, ambos de 1945. Chegamos no fim do último entrevero mundial. Estamos fechando os oitenta, se Deus quiser!
Conheci Seu Ramão há vinte anos quando trabalhava na fazenda vizinha. Tomava conta de retiro e pegava empreitadas de aramado. Na sua morada plantava roça, fazia rapadura e farinha, tudo com capricho. Pegava couro para curtir de "à meia", depois fazia tralhas de montaria. Fazia pilão de morcegueiro e cambará, canoa e gamela de ximbuva, remo e cabo de machado de louro preto, canga e cambão de paratudo, isso à perfeição. Ainda tirava postes e aprumava as cercas .
Se havia festa, era quem assava a carne; se matava o capado do chiqueiro era quem pelava e carneava. No campo, louco igual ao irmão Carmo.
Assim conheci Seu Ramão. Assim imaginava tê-lo algum dia na minha comitiva.
Os dias passavam na mais absoluta calmaria, mas sempre pode haver uma "Cabocla Tereza" e a triste história da traição.
Por semelhantes tomo emprestadas algumas estrofes ao grande João Pacífico:
"Há tempos fiz um ranchinho
Pra minha cabocla morar
Fizemos ali nosso ninho
Bem longe deste lugar
No alto lá da montanha
Perto da luz do luar
Vivi um ano feliz
Sem nunca isso esperar
E muito tempo passou
Pensando em ser tão feliz
Mas a Tereza doutor
Felicidade não quis"......
Com certeza, não houve o mesmo desfecho da conhecida história. Seu Ramão, homem de paz, deixou que partisse a sua Tereza. Mas, como era de se esperar, ficou difícil permanecer naquele lugar de tantas lembranças.
Mas é costume pantaneiro ter uma mulher para" cuidar" e Seu Ramão não fugiu à regra. Assim, juntou- se a dona Iracema, de quem recebe os carinhos devidos e em cuja casa mora quando na cidade. Todos os meses uma boa mesada. Aposentados, podem se dar a esse luxo. Ela com seu benefício e ele com o seu e mais o salário.
Apaziguado o espírito, procurou serviço comigo. Apesar de conhecer seus talentos fiz exigências: nada a conversar antes de comunicar ao seu patrão a decisão de deixar o emprego e concluir o processo de desligamento. Era um craque e não seria eu a cooptá- lo.
Assim foi feito e, só então, Seu Ramão de Oliveira foi morar no galpão da fazenda São Camilo. Isso foi no ano de 2010.
Na condição de filho e neto de papabananas (Livramento e Poconé) tive a certeza do bilhete premiado. Ali estava o funcionário que me haveria de proporcionar a realização de atávicos desejos. Toda essa sua competência para os antigos costumes estaria a minha disposição.
Foram, assim, catorze anos de fartura e caprichos deste velho pantaneiro. Ele roçava, derrubava, queimava, descoivarava, cercava, plantava, cuidava, colhia, fazia a rapadura e a farinha. Era a glória das cozinheiras contar com tanta "mistura": banana da terra, banana três quinas, banana nanica, mandioca, abóbora, moranga, batata doce, quiabo, maxixe, milho verde, feijão, etc. Para a peonada a melancia era o grande prêmio ao final dos trabalhos. Em um couro bem tirado, na carne bem manteada e salgada podia-se ver a sua marca. Galpão limpo, lixo queimado era um dever.
Magro e esguio, com seu caminhar bamboleante, lá ia Seu Ramão sob o sol escaldante das tardes pantaneiras espichar um arame, tapar o buraco feito por um astuto tatú, espantar periquitos do milharal, sondar a cotia que estava comendo as abóboras, cortar um cacho de banana de vez e guardar no paiol pra madurar. Às vezes, ia à roça sem um propósito, mas sabendo que é o cuidado que produz bons resultados. Qualquer descuido e um bando de queixada põe tudo a perder.
Por catorze anos contei com seus préstimos. Brincava com ele, dizendo que faria coleta de seu sêmen para fazer espalhar a genética ou mesmo fazer alguns clones seus. Quem sabe resolveríamos nosso problema com mão de obra no Pantanal.
Mas ambos sabíamos que estava chegando a hora de parar. Conversamos sobre isso várias vezes. Faltava coragem aos dois, a ele para pedir, a mim para mandar.
Um mal estar súbito nos chamou à razão. Trouxe-o para a cidade e o entreguei ao meu médico. Ainda assim insistiu que iria fazer a safra de rapadura. Depois, iria parar.
A cana deu pouca garapa e o melado não deu ponto. As rapaduras não tinham qualidade, a seca não permitiu um último feito. Cortamos o canavial para a tropa e as leiteiras.
Acertamos as contas como deve ser, agradeci pelos serviços e pelo companheirismo de tantos anos. Prometi fornecer material para que possa ter uma ocupação na sua vida urbana (couro, madeira, etc). Comprei a sua tralha completa cujo laço pendurei na minha sala. Garanti que roe couro não porá a bunda nela. Falei que a fazenda é sua casa e sempre o receberá como um amigo. Apertamos as mãos com lágrimas nos olhos.
(*) Pantaneiro, Fazenda São Camilo, Paiaguás de Corumbá MS
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