quinta, 18 de abril de 2024

Passarinhoterapia: quando a observação de aves transforma nossas vidas

27 NOV 2017 - 11h28Por TIETTA PIVATTO

Tente responder a seguinte pergunta: Por que eu observo aves? Tenho certeza que você vai listar uma série de justificativas do porque elas são tão encantadoras, ou simplesmente vai dizer: “porque é legal e ponto”. Não tem como não serem admiradas.

Há tempos tenho prestado mais atenção nas pessoas do que nas aves. Porque afinal tem tanta gente apaixonada por elas?  Esse texto apresenta alguns desses momentos especiais vividos por mim e por colegas que responderam a essa pergunta.

Eu não vou falar obviamente do amor egoísta que aprisiona passarinhos em gaiolas, mas no encantamento que as aves livres, selvagens, despertam no ser humano. Não é apenas a beleza do canto, da plumagem, do comportamento. O que nos encanta, e isso vale para qualquer animal, é a aproximação com o selvagem. A conexão com o natural, com uma natureza da qual somos parte e pouco entendemos. Compreendi isso quando, lá na década de noventa, tive o privilégio de olhar nos olhos de um lobo-guará selvagem, no Parque Natural do Caraça/MG. Ali eu entendi tudo o que nunca consegui definir em palavras sobre o significado dessa liberdade. Nós não temos a real compreensão disso até ter um momento como esse, tão próximo, com um animal.

E claro, por estarem tão perto de nós, serem tão abundantes e chamativas, as aves são os seres que mais facilitam para o ser humano esse primeiro contato. E tenho certeza que você agora está se lembrando do seu momento especial, da primeira ave observada ou fotografada que mudou sua vida e seu foco de interesse. Lembro da ave colorida e tão diferente que vi no início da adolescência, que me fascinou, e que só anos depois eu descobri ser um pica-pau-do-campo. Uma ave comum, tão diferente da rara choca-de-garganta-preta, ave amazônica que fascinou Bruno Renó ou da borralhara-assoviadora que Luciano Lima viu pela primeira vez ainda garoto no Parque Nacional do Itatiaia e até hoje marca encontros com ele na Mata Atlântica, mas o encantamento foi muito semelhante.

E o que dizer quando elas se aproximam da gente, como os beija-flores que voam em frente aos nossos olhos com curiosidade e rapidamente vão embora, nos deixando paralisados? Ou quando presenciamos a amizade entre o pequeno rabo-branco-rubro com o Jonas em Ubatuba? E imaginem o sentimento da Roséli quando um martim-pescador-pequeno que, de tão calmo e confiante, subiu em sua mão permitindo inclusive ser fotografado? Esses são daqueles momentos que chamamos de “orgasmos ornitológicos” ou momentos “pqp”.

Tenho certeza que todos têm uma história assim, e compartilham do prazer de falar de passarinho, conviver com passarinho. E nem preciso muito para convencer os leitores de que observar aves é sim, muito terapêutico.

E aqui eu começo a falar da experiência mais fantástica que as aves me proporcionaram, que foi não apenas ter uma história para contar, mas conhecer histórias de várias pessoas. Algumas tristes, mas todas lindas. Todas endossando o quanto é bom estar no mato olhando passarinho.

Nos últimos dois anos colhi várias histórias de observadores de aves. Gente que observa aves por inúmeras razões, eu diria mesmo como terapia. E aqui tanto faz se é binóculo ou câmera o instrumento, pois o efeito relaxante é o mesmo. Gente que observa solitariamente, em introspecção, seja para relaxar ou para pensar nos seus problemas e decisões que precisam tomar. Gente que prefere ir com um amigo ou dois para aos poucos contar suas angústias em busca de conselhos. Gente que vai em grupo para tagarelar muito e extravasar a tensão acumulada após uma semana de trabalho. Sim, pode parecer um absurdo, mas tem gente que vai ver passarinho só para bater papo. E se divertem muito, voltando para casa tranquilas e felizes após esse momento de catarse.

Encontrei histórias bonitas, como a proximidade familiar, as aves unindo gerações de avós, pais, filhos com foco nas aves, todos de roupas camufladas. Mas também vi filhos que fizeram os pais se interessarem por elas. Crianças que cresceram e hoje nos encantam com seu conhecimento.

Ouvi depoimentos de guias completamente apaixonados pela profissão descrevendo o prazer de mostrar uma espécie especial para um turista. Não importa se uma ave comum para um iniciante ou uma endêmica muito rara para um observador mais exigente. O prazer e o encantamento nivelam todos frente à beleza do momento.

Professores que viram nos olhos de seus alunos o fascínio da descoberta e o começo de uma relação especial com as aves e com a natureza. Serão adultos mais sensíveis à causa ambiental. E nos cursos que dei ao longo destes últimos dois anos, vi esse brilho várias vezes, inclusive no choro de uma menina do interior da Bahia, emocionada com as avezinhas que ela nunca tinha percebido em seu quintal. Não há como descrever o prazer que isso nos dá.

Mas vi também histórias tristes, de superação. Aves que abraçaram e consolaram dores de doenças, separação, de casamentos e namoros desfeitos. Ir para o mato ver passarinho para distrair a cabeça, a saudade dos filhos e quem sabe até encontrar um novo amor.

Também histórias de luto, de perdas esperadas ou que chegaram subitamente. Pais, cônjuges, filhos. Traumas de violência tão fortes que não vou citar aqui. A dor de perdas permanentes traz uma saudade que fica para sempre em nossos corações, mas aos poucos esse vazio vai sendo preenchido pelo conforto trazido por amigos, familiares e no que eu testemunhei, pelo contato com a natureza, e com as aves. Ouvi relatos de como o contato com elas em diferentes situações trouxe conforto, alegrias cada vez mais presentes e principalmente mensagens sobre a continuidade da vida. O canto das aves, a foto bonita, a viagem para lugares novos em submersão no mundo ornitológico preencheu um pouco do vazio do coração, complementado com as amizades e até mesmo compartilhando no meio do mato a tristeza com quem viveu experiência semelhante.

Aves e amigos de passarinhada foram apoio e inspiração para superar muitos momentos difíceis e também para ajudar na tomada de decisões, de definir novos rumos para a vida nova. Não apenas para mim, mas para muitas pessoas que tive o privilégio de conviver.

Passarinhos aguardando calmamente a chuva passar e depois secando-se alegremente sob o sol quente mostraram que a vida continua, que as tormentas passam e nos trazem a florada, os frutos, que podemos entender como aprendizado, maturidade. Tudo passa, sempre. A perda nos faz dar valor a coisas simples, como o canto de um sabiá ou mesmo o brincar de uma cambacica. Que é preciso ter paciência e aguardar o momento certo para que a natureza, as aves e as soluções de nossos problemas se mostrem e sejam compreendidas.

Que a amizade é um bem importante, único, e que podemos encontra-la no abraço cúmplice do melhor amigo ou nas passarinhadas cheias de piadas e fotos divertidas que tiramos um dos outros. Que a vida é efêmera, e de repente sentimos necessidade de compartilhar essa experiência mágica com nossos filhos, pais, amigos, em sintonia com o natural, onde os valores são tão simples e puros.

Eu penso que essa troca de energia, esse religare, é o que nos leva a observar aves. Porque além do prazer da foto, do ticar na lista, tem amigos, tem sorrisos, e tem principalmente aves, beleza de cor, canto e comportamento, que nos transportam para um universo ao mesmo tempo tão longe e tão perto, que é nossa ligação com o natural, com o selvagem. Todos precisamos estar conectados com a natureza, e somos privilegiados por amar passarinhos. Eles não compreendem nossa relação, para falar a verdade não estão nem aí com nossas dores e angústias. Para eles somos apenas estranhos fantasiados de folhas que invadem a floresta, mas ainda assim nos dão momentos únicos e especiais, às vezes solitários, às vezes compartilhados. Mas quem já experimentou esse prazer que elas nos trazem sabe do que estou falando.

E a resiliência das aves nos mostra que sim, tudo passa. Que a vida é uma sequência de coisas boas e não tão boas, e assim como o filhote que sobrevive porque aprendeu a se esconder da chuva, nós seguimos aprendendo com cada dificuldade que a vida nos traz. Então bora bater as asas e aproveitar o lindo sol depois da chuva! E acreditem. Mesmo quando a dificuldade é mais difícil, nós nunca estamos sós!

*Texto publicado originalmente na revista Passarinhando.

Bióloga, observadora de aves há mais de 15 anos e escritora.

Leia Também

Relatos de viagem

A decoada, o armau e história de pescador no Pantanal do Nabileque

Mais Relatos de Viagem

Megafone

Todo equívoco humano é satirizável. Enquanto houver ser humano com suas carências, inseguranças e dúvidas, haverá sátira

Ziraldo (1932-2024)

Vídeos

Bonito, um convite à sustentabilidade

Mais Vídeos