sábado, 20 de abril de 2024

O Tordinho

30 MAR 2023 - 11h21Por MANOEL MARTINS DE ALMEIDA

O Tordinho não tem um canto musical. Longe de um Sabiá, de um João Pinto, cujos gorjeios são maviosos e encantadores. Não, o Tordo tem um canto nada melodioso e não prima exatamente pela musicalidade.
Entretanto, raros são os passarinhos que conseguem passar tanta alegria e tamanha comunicação ao ambiente em que vivem.

No amanhecer pantaneiro, lá estão eles nas bocaiuveiras, aos bandos, felizes e brincalhões, conversando entre si em uma algazarra moleca e entusiasmada. Em dias de chuva, eles alcançam o nível máximo de manifestação, traduzindo a alegria da nossa gente. Ao entardecer, quando o cansaço e a nostalgia se apoderam de nós, lá vem eles novamente trazendo um descer do pano da cena pantaneira, quando nos fala claramente que amanhã será um novo dia e que tudo será como deve ser, que a vida e a faina continuam.

Nas cozinhas pantaneiras, nos galpões, nos ermos da campanha, quando o sol escaldante nos obriga a buscar a sombra amiga, lá estarão eles, negros reluzentes, a plenos pulmões, em maravilhoso solo ou dueto, livres, em campo aberto, únicos, a nos dizer bem vindos, que bom que estão aqui, descansem um pouco, enquanto cantamos para vocês.

O meu velho pai os amava. Poconeano legítimo, nascido e criado na região pantaneira onde os animais falam, não poderia deixar de traduzir para os humanos o seu canto: "Chico, o que comeu hoje, arroz? Tá de papo cheio? Tô, Chico, Chico, Chicoooo!!!."

Eles não têm a fama e o glamour das araras azuis e nem a pretensa realeza dos tuiuiús, não ocupam os painéis que promovem o Pantanal pelo mundo afora, nem são lembrados pelos nossos compositores. Talvez falte a olhos e ouvidos mais clareza e compreensão do nosso universo rural ou, talvez, o Tordinho não se venda tão facilmente à primeira câmera e à primeira manchete. Quem sabe, guarde a simplicidade da gente pantaneira e tenha uma certa rejeição a algumas maneiras de se apresentar o Pantanal.

Em menino aprendi a reconhecer a sua fala. Sempre os agradei em meu pomar com cochinhos de arroz e água. Por vezes, me pego falando com eles, tentando imitar o seu canto. Penso que fazem parte da minha existência e que gostaria de ouvi-los todo o sempre.

Por tudo isso, e muito mais, eu os considero dignos representantes da alma pantaneira.

(*) Pantaneiro, produtor rural na sub-região do Paiaguas, em Corumbá (MS)

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