E daí se todo o pescador trazia peixe ao final do dia? Deuzimar não. Ele lançava o anzol com uma pena de ganso espetada e ficava ali esperando um vento passar. Se bobeasse, Deuzimar fisgava, fosse quente, morto ou frio. Segurando no muque, o homem saía voejando por cima das ondulações azuis que ninavam o barco enquanto ele não chegava. Ninguém diga que Deuzimar não lutava. Como bom pescador, brigava até extenuar o último músculo, todo ele resumido em nervos e esperança. Algum dia, levo a prova! – resmungava.
Os colegas, bêbados de inveja e de cerveja, diziam às mulheres que o rapazola não fazia nada mais do que dormir. Vagabundo de marca maior! – gritavam no cais do porto. Com ou sem razão, um fato era verdade: Deuzimar chegava sempre sem vento e sem peixe. O problema era pagar o óleo diesel do barquinho. O pescador endividou-se. Foi ao banco, assinou a papelada, deu a embarcação em garantia e sobreviveu mais seis meses caçando um pé de vento arredio. Diacho! Ainda hei de pegar o baita – prometia a si mesmo.
O fato é que o pescador nunca puxou nem brisa para a costa. Depois que fisgava um vento, não tinha paciência para vencê-lo. Ao final, exausto de luta, rodopiava no turbilhão aéreo e caía desacordado no convés de madeira. Sem sucesso, o jeito foi alijar-se do mar, entregando o barco pelas dívidas. Dali em diante, Deuzimar passou a viver em terra, onde ficou conhecido simplesmente como cabeça de vento. Até que a cidade costeira amanheceu escurecida por um comboio de nuvens ressentidas Pelo jeito que esbravejavam relâmpagos, havia ali algum mau-humor cinza, uma grave indisposição entre o céu e a terra. A ventania encorpou e tombou as árvores desavisadas.
Ao perceber que não tardava desatar furacão, o povoado espremeu-se dentro da igrejinha de pedra. Tinham razão em temer o pior. Os barcos foram virados pelo rebuliço das ondas, telhados despediram-se das casas e algumas vacas pastavam no ar. Vento grosso – comentou Deuzimar. Ele nem ligou para o desespero alheio. Foi mais um que se refugiou entre os bancos da igreja. Entre choro e reza, o padre pediu a Santa Bárbara que levasse a tempestade para longe do vilarejo. Pode esquecer, vigário: aqui é porto bom– observou o pescador. Não é você que pesca vento?! Mostre agora do que é capaz!, provocaram as carolas despeitadas. Pois mostro – aceitou o desafio. Correu para casa à procura de linha boa, anzol reforçado e uma pena de ganso para usar de isca. Nem precisou esperar. Assim que jogou a chumbada por cima da cabeça, sentiu que o furacão engoliu tudo até o ventre.
Deuzimar começou a lutar: de início, deu linha pro bicho ventar à vontade. Um, dois, três carretéis emendados de improviso foram suficientes para se enrolarem naquele rodopio raivoso. O pescador apoiou os pés no paralelepípedo da rua e deu combate ao rodamoinho como se lutasse contra baleia branca. É vento norte! – classificou Deuzimar. Com o anzol na barriga, o vento sufocou aos poucos, debatendo-se da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, de cima para baixo, de baixo para cima, agastado pela linha que se enrolava em torno de si.
No fim, o bicho sucumbiu. Fez que não. Ainda lutou: derrubou um muro velho, virou duas carroças e destelhou a padaria. No entanto, como toda caça abatida, acabou por entregar-se e deu o último sopro de protesto. Veio vindo, meio morto, meio vivo, puxado pelo braço direito do pescador que teve, enfim, a paciência de encurralar o vento num grande pote de maionese.
Deixou uns furinhos na tampa para o bicho continuar respirando e o exibiu para todos os colegas pescadores: aqui está! Peguei um! Vento norte, hein? Um baita! – exibiu-se feliz. Depois disso, nem o padre se opôs ao casório de Deuzimar com uma sereia da qual estava enamorado.
Eduardo Mahon é escritor e advogado
Artigo publicado no Portal Mato Grosso (www.portalmatogrosso.com.br)
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