sexta, 29 de março de 2024

Estamos descolorindo as florestas?

05 JUL 2021 - 11h03Por RICARDO LUIS SPANIOL E CRISTIANO AGRA ISERHARD

 

 

 

No domingo dia 2 de maio, uma reportagem do jornal O Globo trouxe fotos chamativas mas incomuns para a capa de um periódico de abrangência nacional: borboletas coloridas. Como borboletas foram parar na capa d’O Globo em plena pandemia de coronavírus com tanto a noticiar? Um trabalho desenvolvido no Programa de Pós-graduação em Ecologia da UFRGS, em colaboração com a UFPel, e a Universidade de Exeter, na Inglaterra, está por trás dessa reportagem pouco usual. Revelamos que o desmatamento é ainda mais pernicioso do que imaginado, pois as borboletas amazônicas nesses ambientes são menos coloridas – o impacto humano nas florestas pode estar nos levando a um mundo mais sem cor e sem vida. Também revelamos que pesquisa científica de boa qualidade continua sendo produzida no Brasil, mesmo sem muito reconhecimento ou incentivos.

A biodiversidade tem diferentes aspectos. Podemos avaliá-la pela quantidade de espécies numa área, mas também pelas características que essas espécies apresentam, ajudando-as a sobreviver e/ou reproduzir. Essa visão da biodiversidade é chamada funcional, pois tem a ver com o funcionamento dos organismos no meio em que vivem. Dentre as características (ou atributos) funcionais estão as cores dos seres vivos.

A função da cor pode ser variada, desde produzir padrões que tornam difícil enxergar um organismo (camuflagem) até simplesmente a comunicação visual. Nesse caso, a cor pode sinalizar atratividade ou repelência. Algumas cores que para nós são vibrantes, como vermelho e amarelo, podem indicar que uma potencial presa deve ser deixada em paz, pois pode ser venenosa, por exemplo.

O doutoramento do pesquisador Ricardo Spaniol no PPG em Ecologia da UFRGS consistia na avaliação da fauna de borboletas frugívoras (cujos adultos se alimentam de frutos em decomposição) em áreas desmatadas e fragmentadas na Amazônia. Ricardo era orientado pelo professor Milton Mendonça e co-orientado pelo professor Cristiano Iserhard, da UFPel (egresso do PPG em Biologia Animal/UFRGS). Utilizamos sítios de um projeto clássico em Ecologia, o PDBFF (Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais), coordenado pelo INPA (Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia), ao norte de Manaus. Um desmatamento experimental controlado nos anos 1980 criou fragmentos de mata de diferentes tamanhos e deixou áreas de mata intacta. Ao redor desses fragmentos havia criação de gado, mas algumas áreas foram abandonadas e a floresta retomou sua sucessão ecológica. Usamos armadilhas para atrair borboletas e contamos quantos indivíduos de quais espécies eram capturados em cada ambiente. Mas além de saber quantas borboletas havia (60 espécies no total) e quais espécies estavam onde, queríamos saber da sua diversidade funcional, como diferentes características desses organismos respondiam ao desmatamento e à regeneração natural da floresta.

Com a colaboração da professora Sandra Hartz (Ecologia/UFRGS), Ricardo passou um período no laboratório do professor Martin Stevens, na Universidade de Exeter, Inglaterra, analisando os padrões de cor das borboletas encontradas. As cores dos organismos são coisas complexas, quantificadas em matiz, saturação, brilho, contraste entre cores vizinhas e diversidade de cores em cada asa de borboleta.

As borboletas de florestas intactas e secundárias (com mais tempo de regeneração) eram mais coloridas do que as de áreas recém-desmatadas e os fragmentos florestais pequenos. O matiz das asas em ambientes recém-desmatados era avermelhado, a saturação baixa e o brilho maior, com tons mais amarronzados e claros, típicos de camuflagem. A diversidade de cores das asas era maior em florestas intactas, e mesmo que borboletas camufladas também ocorressem ali, estratégias de coloração, como transparência e asas com padrões de ocelos (“olhos”) eram mais comuns (artigo Descolorindo a floresta Amazônica: como o desmatamento afeta a coloração das borboletas, publicado em 2020 na revista Biodiversity & Conservation).

Utilizamos a expressão “descolorindo a floresta” para descrever esse processo, mesmo no título do artigo científico, pela sua capacidade descritiva e pela imagem que evoca. A perda de variedade de coloração é mesmo uma perda de biodiversidade – só que em vez de computarmos a diminuição no número de espécies num ambiente, mostramos um aspecto funcional dessa diversidade sendo desgastado também. Quantos aspectos mais da biodiversidade são perdidos a cada momento sem que sequer tenhamos conhecimento?

A destruição dos ambientes tem de ser freada imediatamente. O cenário hoje é de penúria ambiental absoluta no Brasil. Um governo que desconsidere a problemática ambiental já é nocivo, pois é patente que a conservação do meio ambiente é crucial para todos. Mas um governo contrário às causas ambientais seria inimaginável há até bem pouco tempo. O descaso com queimadas na Amazônia, a exploração ilegal de madeira e garimpos são sinal de complacência governamental que só pode levar a degenerescência ambiental.

Por fim, no Brasil ainda se realiza Ciência de boa qualidade e com menos custos. Temos universidades capacitadas para o ensino e a formação de mão de obra qualificada e também contribuímos para o país por intermédio de nossas pesquisas. Nossa pesquisa básica com biodiversidade não precisa envolver grandes e complexas estruturas laboratoriais ou equipamentos. Nosso maior investimento é para poder acessar essa biodiversidade, onde ela esteja; nosso gasto é de tempo necessário para processar material biológico, analisar e organizar dados. Por esse tempo, dependemos de bolsas, que têm valores irrisórios hoje e estão em falta, travando o desenvolvimento das carreiras de muitos bons cientistas. Mesmo que tenhamos tido ajuda financeira do PDBFF (Auxílio-Pesquisa Thomas Lovejoy, INPA) e do PPG na UFRGS, muito ainda saiu do bolso de nosso doutorando. Mesmo assim, formamos profissionais capacitados para entender, fazer e divulgar Ciência, algo central para a sociedade brasileira neste momento de negação científica. Queremos voltar à Amazônia, ir a outros lugares do Brasil e do mundo e aprofundar nosso conhecimento sobre a coloração, seja de borboletas ou de outros organismos. Mas precisamos, como a Ciência brasileira toda, de apoio e de mudança do estado atual.

(*) Ricardo Luís Spaniol é biólogo, mestre em Biodiversidade Animal (UFSM) e doutor em Ecologia (UFRGS).

(*) Cristiano Agra Iserhard é licenciado em Biologia pela UFRGS, onde também desenvolveu Mestrado e Doutorado em Biologia Animal.

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