quarta, 11 de dezembro de 2024
ARTIGO

Afinal, qual a idade de Mato Grosso do Sul: 46, 500 ou 12.400 anos?

15 AGO 2024 - 10h28Por GILSON RODOLFO MARTINS

A questão acima nos leva a pensar sobre os distintos processos de povoamento e ocupação, ao longo do tempo, do território do atual estado de Mato Grosso do Sul e suas respectivas configurações políticas, sociais e culturais.

Nas ciências humanas, as respostas científicas para algum problema estabelecido, tal como a questão inicial no título deste artigo, estão diretamente conectadas a quem faz a pergunta, ao que esse alguém pensa, ou sobre o que está pensando. Nessas disciplinas do conhecimento, a verdade científica buscada não se apresenta em respostas fechadas como o é, por exemplo, nas ciências exatas. As datações acima citadas são “ungidas” pelos enfoques dados por quem está interrogando atendendo, assim, às suas curiosidades recortadas de um todo.

Uma coisa é a datação fixar e explicar a origem física e a cronologia inicial da ocupação humana - os sapiens - na área geográfica estadual atual, outra é datar o espaço social e culturalmente aqui territorializado por diversas etnias no tempo - as temporalidades. Também serão específicas e correlatas as abordagens toponímicas registradas. No início da colonização ibérica nesta região, no século XVI, o atual espaço estadual, estendido até o contemporâneo estado de Mato Grosso, era registrado na cartografia histórica colonial com o nome de “Acutia”. Depois, passou a ser nomeado por subcontextos, tais como Paraguai Católico, Campos de Xerez, Província Jesuítica do Itatim, Campos de Vacaria, Pantanaes e, por fim, no século XVIII, de forma geral, até a divisão federativa em 1977, como Mato Grosso.

No terceiro caso anunciado no título do presente texto (12.400 anos), o conceito “povos originários” não se aplica como resposta explicativa de um acontecimento primordial ou fundador, pois, do ponto de vista de vista da Antropologia Biológica e da Arqueologia, os primeiros seres humanos/sapiens, que aqui habitaram/chegaram, não eram originários do território de Mato Grosso do Sul, eram povos migrantes das regiões adjacentes. Portanto, os humanos não se originaram no espaço geográfico de Mato Grosso do Sul.

Na América não houve a evolução biológica dos hominídeos. É sabido cientificamente que os seres humanos/sapiens adentraram no continente americano em um período temporal decorrido entre 20.000 e 50.000 anos atrás, aproximadamente, isto conforme a corrente científica mais citada. O povoamento humano das três Américas foi um acontecimento proveniente de processos migratórios, ocorridos por meio de levas sucessivas, durante dezenas de milhares de anos atrás. A plataforma emigratória principal teve como área de acesso ao continente americano a extremidade oriental da Sibéria, a região da Beríngia, conectada por uma imensa massa de água congelada ao Alasca atual. Essas ondas migratórias, ao longo do tempo, por milhares de anos, se movimentaram ocupando as três Américas, do Alasca à Patagônia, do Pacífico ao Atlântico.

Então, pode-se perguntar, desde quando existem seres humanos vivendo no território estadual? 12.400 anos, aproximadamente, é a datação radiométrica mais antiga obtida pela Arqueologia até o momento, comprovando, indiscutivelmente, a presença do sapiens nesta área geográfica. Claro que as pesquisas arqueológicas não estão concluídas ainda, portanto, a Arqueologia Regional estipula hipóteses que remontam, pelo menos, a mais de 25.000 anos atrás, porém, não muitos milênios distantes desse marco cronoarqueológico. Essas pessoas viviam como predadores naturais dos recursos ambientais sazonalmente disponíveis. Foram sociedades de caçadores/pescadores/coletores, compostas por bandos integrados por apenas algumas dezenas de pessoas. Não eram homogêneas culturalmente e foram elas que precederam durante milênios as sociedades denominadas genericamente indígenas. Essas formações socioculturais se extinguiram havia muitos séculos antes do “descobrimento” do Brasil.
 
Todavia, na perspectiva da Arqueologia, Antropologia Social e Cultural, decorridos os últimos cinco milênios, diversas formações sociais e sistemas culturais mais complexas que as anteriores existiram na área territorial de Mato Grosso do Sul, algumas ainda existem, enquanto outras desapareceram antes mesmo do início do período colonial ibérico. Pelo que se sabe, as mais expressivas e longevas são oriundas de outras regiões que não o território estadual. Portanto, a aplicação do termo “povos originários”, ou seja, aqueles grupos étnicos que aqui estavam estabelecidos, desde antes do marco cronológico retrocitado, só se ajusta a partir dessa ótica, ou seja, possuem suas “origens” em outras regiões, mas aqui se adaptaram e passaram por mudanças culturais e sociais que produziram novos perfis étnicos. As dinâmicas culturais são constantes em qualquer sociedade humana.

Várias dessas sociedades ditas “originárias” tiveram, na verdade, suas origens no âmbito de processos migratórios cujos marcos cronológicos e temporalidades etnográficas foram estabelecidas fora da área geográfica do atual Mato Grosso do Sul, em diferentes momentos dos últimos 5.000 anos. Por exemplo, a Arqueologia data como momento de chegada das primeiras levas migratórias dos índios Guarani agricultores ceramistas – provenientes da região amazônica – na área de Mato Grosso do Sul, em alguma realidade há aproximadamente 1.800 anos atrás. É correto afirmar que antes dessa movimentação territorial já existiam outras etnias ocupando o mesmo espaço, inclusive bandos nômades de caçadores/pescadores/coletores, predadores pré-indígenas, habitando abrigos sob rocha ou acampamentos temporários a céu aberto. Ainda como exemplo desse painel de temporalidades socioculturais etnográficas presentes no passado, pode-se citar a configuração das etnias falantes de línguas da família linguística Guaná, como os Terena e os Kinikinao, e outras já desaparecidas do território estadual no período colonial ibérico, as quais, como elas mesmo reconhecem, ingressaram no atual território sul-mato-grossense a partir de meados do século XVII. Nesse enquadramento podemos incluir também as sociedades falantes de línguas integrantes da família linguística Guaikuru, como os atuais Kadiweu. Outras etnocronologias locais/estaduais de povos que aqui viveram são conhecidas pela Arqueologia apenas parcialmente, enquanto algumas são desconhecidas, apesar do conhecimento de que aqui viveram, o que é testemunhado pelos vestígios arqueológicos, sobretudo cerâmicos, os quais foram coletados nas últimas décadas pelas pesquisas arqueológicas. Essas etnias desapareceram, por motivações diversas, antes mesmo do início do período colonial ibérico.

Outra hipótese posta pelo título deste artigo (500 anos) diz respeito às origens do período colonial ibérico no espaço atual de Mato Grosso do Sul. Quanto a essa cronologia, as explicações são produzidas, não mais pela Arqueologia e sim, com muito mais segurança e precisão científica, pela ciência histórica. São abundantes as fontes primárias manuscritas produzidas do século XVI em diante. Tal documentação científica, depositada em arquivos públicos no Brasil, Paraguai, Argentina, Portugal e Espanha, entre outros arquivos, é progressivamente detalhada, descrevendo os acontecimentos relacionados aos processos de colonização ibérica e suas relações com as sociedades etnicamente pré-existentes.

Essas fontes empíricas, geradas sobretudo por cronistas coloniais contemporâneos aos acontecimentos históricos narrados, à luz da crítica histórica, estabelecem de maneira lógica e satisfatória como marco temporal da chegada dos primeiros europeus no território estadual, o ano de 1524. Foi nessa data que o português Aleixo Garcia, integrante da tripulação da expedição marítima comandada por Juan Diaz Solis, sobrevivente de um naufrágio no litoral catarinense ocorrido no ano de 1516, atravessou o Mato Grosso do Sul com destino à Cordilheira dos Andes. Liderando uma expedição colonial conquistadora, acompanhado por várias centenas de índios Guarani/Karijó, seus aliados, provenientes das aldeias do litoral catarinense, juntamente com mais quatro indivíduos não índios, dos quais há registros históricos de seus nomes, visando apropriar-se de artefatos de ouro e prata integrantes da cultura material do Império Inca, atravessou Mato Grosso do Sul, o Paraguai e foi ter na Bolívia andina. Nessa perspectiva, respondendo à interrogação posta no título deste artigo, podemos considerar, seguramente, que é neste ano de 2024 que rememoramos os 500 anos desse fato histórico.

Quanto à cronologia originária do topônimo “Mato Grosso do Sul”, essa remonta há 46 anos, quando, em onze de outubro de 1977, foi assinada, pelo então Presidente Ernesto Geisel, a Lei Complementar nº 31, dividindo em dois estados federativos o então estado de Mato Grosso. Todavia, a existência política e territorial do estado de Mato Grosso do Sul é contada a partir de 1º de janeiro de 1979, perfazendo em 1º de janeiro de 2024, 45 anos de duração.
 

*Arqueólogo, Prof Dr e Historiador 

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