quinta, 28 de março de 2024

A quem a cota zero não interessa

12 NOV 2019 - 11h27Por THIAGO GOMES DA SILVA

A nova lei de pesca amadora que entra em vigor em 2020 em Mato Grosso do Sul bateu de frente com os interesses de um grupo – empresários, ambientalistas, pesquisadores e lideranças políticas – que há anos dominam o comércio clandestino de pescado, manipulam dados e influenciam decisões, como esta da cota zero.

Por que razão o pescador profissional se manifesta contrário a uma lei que não lhe afeta? Foi mantida a sua cota de 400 quilos/mês e a proibição de captura e transporte pelo pescador esportivo o beneficiará diretamente, pois terá consumidor (o turista) para o seu produto. E o governo ainda se propõe a criar programas de apoio para agregar renda.

Na realidade, o pescador profissional está sendo explorado e usado por esse grupo como massa de manobra. A categoria está nas mãos do atravessador, é escravizada, se tornou dependente de pessoas inescrupulosas, que dominam o setor diante da conivência dos órgãos fiscalizadores e ausência de uma política de fomento que beneficie toda a cadeia produtiva.

O movimento ocorrido em Porto Murtinho, onde chamados pescadores fecharam o Rio Paraguai em protesto à cota zero, escancara os verdadeiros objetivos dessa reação orquestrada, que sensibilizou inclusive o Ministério Público. Murtinho é rota do contrabando de pescado, dominada por uma máfia integrada por brasileiros e paraguaios.

O poder dessa quadrilha, da qual faz parte gente de farda, se assemelha aos traficantes de drogas e animais silvestres e contrabandistas de cigarro. Pessoas que no passado integraram uma equipe de investigação foram ameaçadas de morte, e o que se apurou foi arquivado.

O pescado, em grande escala, chega à fronteira com o Paraguai procedente da região Norte de Corumbá, um dos destinos de pesca do Estado, e também do Rio Miranda. É transportado por estrada até Assunção, de onde retorna ao Brasil (Foz do Iguaçu), como produto paraguaio, para ser comercializado nas principais redes de São Paulo.

Essa constatação pode explicar o “vazio” contábil entre o volume pescado e o comercializado pelo pescador profissional, que é obrigado a emitir nota fiscal. Dados do Sistema de Controle de Pesca de Mato Grosso do Sul (SCPESCA) apontam que em 2016 a pesca profissional capturou 191 toneladas de peixes, porém apenas 46 toneladas foram comercialmente declaradas.

Com a cota zero, o pescador profissional, devidamente organizado por meio de suas colônias, terá para quem vender diretamente o seu produto – o pescador esportivo -, por um valor de mercado, e aos poucos se desvinculará da sua dependência com o chamado “patrão” (atravessador), que lhe paga uma miséria pelo pescado. É um raciocínio obvio.

Essa mudança de paradigma, no entanto, fere os interesses de grupos que atuam ilegalmente na pesca, razão pela qual a reação em cadeia contra a nova lei, que veio para reduzir os esforços de captura em nossos rios, usando argumentos que subestimam a nossa inteligência, como: impacto sociais e econômicos à pesca profissional e menos turistas aos destinos.

A proibição de captura e transporte de pescado hoje é uma tendência mundial, com adesão quase unânime do pescador esportivo, e movimentando bilhões de reais, dentro e fora do Brasil. A Argentina é um exemplo, atraindo milhares de brasileiros, muitos dos quais deixaram de vir ao Pantanal por falta do peixe nas bacias do Paraguai e Paraná.

Aqui próximo, em Goiás, a cota zero em vigor desde 2013 (acaba de ser renovada por mais cinco anos) provocou uma mudança cultural, além dos benefícios ambientais. O volume de pescado comercializado (pelo pescador profissional) no estado cresceu 400%, tornou-se uma atividade econômica. O número de infrações caiu de 30% (2013) para 5% (2018).

Portanto, não apoiar a cota zero é aceitar passivamente a exploração ilegal dos nossos recursos pesqueiros, em prejuízo a uma massa de pobreza, o pescador profissional. É concordar com pesquisadores da Embrapa Pantanal, que agem ideologicamente para influenciar a opinião pública, dizendo que o extrativismo não é a causa da redução do estoque pesqueiro.

Argumento esse que o Ministério Público Federal se baseia em uma ação de procedimento que recomenda ao Governo do Estado a suspensão da aplicação da nova legislação pesqueira. Segundo a Embrapa, “em termos qualitativos, observam-se que a maior proporção de espécies de peixes de grande e médio porte se mantem constante nas capturas anuais”.

E mais: “...esses fatos indicam que as normas de pesca existentes estão contribuindo de forma efetiva para a manutenção das populações e para o uso sustentável dos recursos pesqueiros nas condições atuais da bacia...”.

Como uma instituição de pesquisa tão respeitada assume uma informação que não tem sustentação científica, em detrimento de uma proposta de ordenamento da pesca para salvaguardar a fauna pantaneira? Como o MPF aceita tamanho desatino, enquanto cobra novos estudos, os quais podem ser aferidos na prática, no dia a dia da atividade pesqueira?

Os dados estatísticos apresentados pela Embrapa Pantanal não avaliam os estoques pesqueiros em nossos rios (em declínio ano a ano). São análises pontuais, daquilo que é declarado por pescadores amadores e profissionais e transportados pelas estradas e fiscalizados pela Polícia Militar Ambiental. Não há estudos de campo nas nossas bacias. São estimativas de transporte de mercadoria - nada mais.

As medidas anunciadas pelo Governo do Estado mostram o compromisso do poder público perante o meio ambiente, onde o interesse público sobrepõe o interesse comercial. Isso é constitucional. Por outro lado, as medidas apresentadas não alteram a garantia dos direitos dos povos e comunidades tradicionais, como alega o MPF.

O decreto é uma ação cautelar, de garantir o equilíbrio entre as forças econômicas que exercem pressão sob os recursos pesqueiros e a necessidade de se proteger a natureza.

(*) Jornalista e advogado

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