quinta, 25 de abril de 2024

A malhada (parte 1)

03 MAI 2022 - 22h32Por MANOEL MARTINS DE ALMEIDA

Paiaguás, 3 de maio de 2022

Quando a pecuária no Pantanal era mais à larga, os campos eram menos cortados por cercas e o trabalho do rebanho era feito à moda antiga, prender o gado na malhada garantia um manejo mais seguro, pois, nesse momento, por serem animais de hábitos gregários, as reses estão reunidas em mútua proteção contra possíveis predadores. A "ciência" para a realização dessa tarefa e parte do universo que envolve esse acontecimento é o que tentarei passar nestas narrativas, que são lembranças do menino que eu era e de tudo que vi e vivenciei.

Corria o mês de junho, lá pelos anos cinquenta e tantos. Não havia a Internet e a informação sobre o tempo cabia às saracuras, bugios e jacarés. Alguns dizem que doem as velhas quebraduras. Vento norte de três dias quer dizer que ele vai pra geladeira e volta gelado, assobiando, franzindo cenhos e entortando pescoços, diziam outros.

Este frio havia chegado há uns dois dias e era de "mancar cachorro".

O trabalho de gado ia muito devagar. A desmama havia de ser feita, pois a vacada sentira a enchente e os bezerros já estavam taludos, judiando das mães. Não havia leite mas não  largavam do peito. Havia que apressar o serviço e o inverno chegara para complicar as coisas. Urgência era a demanda. Seguindo o "protocolo" para essas ocasiões, medidas são tomadas.

À tarde, Benedito Silva, capataz da fazenda, mandou tocar a tropa, apartar e prender no piquete da madrugada. Escolheu o cavalo Cruzeiro, arreiou e partiu com seu cachorro Xavante para "sondar" uma malhada.

Já batera as sete horas, a comitiva já havia jantado quando ele retornou. A cachorrada do pomar anunciou o seu regresso. Desencilhou e soltou o cavalo ali mesmo, na beira do pomar. Cruzeiro, livre das cordas, foi rolar no areião. Levantou-se, sacudiu o lombo, deu um relincho e saiu pastando a grama já orvalhada.

Benedito era filho de Chica e Joãozinho da Santa Luzia. Fôra bagualhador nos campos da Nhecolândia. Contava causos e passagens heroicas da lida pantaneira.

Mas, nessa noite, o seu pensamento era como "fechar" aquela malhada. Entrou em sua casa e puxou a garrafa de Tamandaré. Precisava de um gole para enfrentar o banho gelado. Pediu a Catita, sua mulher, que lhe arrumasse um prato de comida, um doce de maracujá do campo que vira na compoteira e uma fatia de queijo fresco. Calçou o tamanco e saiu para o banho.

Eram duas horas da manhã quando a sirene tocou, acordando galos, cachorros e arancuãs. Os mais velhos atiçam as mães de fogo para um rápido chimarrão. Quando a água chia na lata enegrecida alguém exclama: "óia o mate, gurizada!"

Dona Izidora já estava passando o café e seu Leonardo, cacerence que descera o rio com o pioneiro Pedro Alexandrino de Lacerda e fazia o serviço da praia, já havia, a essa altura, puxado o peito de algumas queijeiras. Era o que se compreendia pela luz da lamparina sobre a tronqueira do mangueiro de leite.

O sino do café chamou a peonada. Os casados não vinham nessa hora. O moca era coisa rara nas ranchadas. O chimarrão, esse sim e o guaraná se o peão fosse de rio acima, não faltariam. Pequenos pontos de luz diziam que o fogo estava aceso nas cozinhas da fazenda.

A peonada vinha para o café, trazendo pendurado no cabo do machete um buçalete. À medida que chegavam ao "comedor" iam salvando os já presentes. Ouvia-se os sons dos bambolins dos "tiradores" batendo no cano das botas sanfonas e das esporas riscando o cimentado.

O vento sul no mês de junho costuma trazer uma garoa fina, assim os ponchos de leite de mangabeira (látex) exalavam um cheiro característico de borracha e farfalhavam ao se movimentar. 

Café tomado, o grupo sai para "formar" a tropa. Cada um pega o seu "montado" e leva para encilhar. Nesse dia, o escalado para levar a erva do tereré e a "chaculatera", para esquentar a água do chimarrão do churrasco, seria o Benedito Pereira, o Dito Rubafo, um de três irmãos na comitiva, futuro capataz na fazenda do Nabileque.

Benedito Silva vai ao carneador e pega duas "viúvas" que soleara para essa oportunidade. Arreia seu cavalo com capricho, dá uma ajeitada no laço deixando a armada um pouco mais aberta, prende na garupa, passando a "ligeira" e apresilha no destorcedor da barrigada .A guampa com a bomba amarrada por um "tento" comprido que servia para  lançá-la certo no lugar da água mais limpa, é presa à frente, na cabeça do arreio com uma presilha. Veste a guarda de lona, calça a botina reúna, passa a sirigola do mango no pulso - usava esporas raramente -, pega seu revólver, põe na cintura, ajeita o seu machete Collins com a chaira Corneta e, por fim, a peia de couro cru que se fechava em uma "ligeira". Chama o Odenil Pereira, entrega o churrasco e o sapicuá com farinha e rapadura. Feito isto, benze o corpo, dá dois tapas na baldrana e boleia o corpo, já meio cansado da dura lida campeira, para cima do seu cavalo Bolinha. Só então veste sua famosa capa Ideal.

Odenil, apelidado Caxingue, por ser pequenino e ligeiro, filho de Zé Marques e sea Alvina, nascido na fazenda, o caçula dos três irmãos, apeia, levanta os pelegos, ajeita o churrasco, amarra o sapicuá com a garupeira e monta.

Algum redomão dá uma "isprimentada" lá na saída do galpão, mas o ginete é cera, segura o pulo, dá uma engomada no matungo e corre um piado que ecoa na madrugada paiaguense. Sebastião Preto, peão completo, recém contratado, apeia para arrumar a "traia", injuriado por ter que pisar novamente na grama molhada. O potro resfolegando ergue a cola e solta bolas fumegantes do mimoso pastado nas baixadas.

Antônio Pereira, o terceiro e mais velho da irmandade, de apelido Vico, e mais dois companheiros "boleiam" a tropa e se posicionam no portão de saída. Não levarão sinuelos.

“Então vamos”, diz Benedito, apressado. O som das argolas tinindo e o baque surdo do troteado se fazem ouvir. Um ou outro animal sonolento peida ao sentir as esporas no couro. Nesta campeada não irão os cachorros. 

A fumaça dos cigarros de fumo de corda com raspa de algodãozinho se espalha na madrugada fria. A noite é escura e o vento sul engruvinha a pele dos rostos. Rapidamente, a comitiva desaparece na escuridão. Só se vê a brasa dos cigarros nas longas tragadas daqueles que seguem na cabeceira da tropa.

Em silêncio todos rezam: Na hora de Deus e da Virgem Maria!


(Para o meu amigo Luiz Guilherme Arruda de Lacerda, no seu aniversário).

(*) Pantaneiro, Fazenda São Camilo, Paiaguás de Corumbá (MS)

Leia Também

Relatos de viagem

A decoada, o armau e história de pescador no Pantanal do Nabileque

Mais Relatos de Viagem

Megafone

Todo equívoco humano é satirizável. Enquanto houver ser humano com suas carências, inseguranças e dúvidas, haverá sátira

Ziraldo (1932-2024)

Vídeos

Bonito, um convite à sustentabilidade

Mais Vídeos